4.3.20

POR AMOR À CAMISOLA “Entre as pequenas coisas da vida, o futebol é uma das mais importantes!”





Durante mais de 7 anos fui jogador federado de futebol, júnior e sénior, num pequeno clube filial de um “dos grandes”, sem nenhuma ambição de fazer vida a jogar, por amor à camisola.
Dizem-me agora que o futebol é “uma indústria”, mas não me explicam onde estão as suas fábricas, nem quais são as suas matérias primas, nem como são as máquinas ferramentas que as transformam, como se constitui o seu capital fixo e variável, e como se reproduz e distribui socialmente,  ou como nessa “indústria” se constitui o preço, o salário e o lucro. A estas zonas obscuras, poucos têm acesso e, em Portugal, apesar de tantos jornais, programas televisivos e comentadores, pouca luz ilumina estes recantos.

1.
O que é então o fenómeno futebolístico?
“Entre as pequenas coisas da vida, o futebol é uma das mais importantes!” Dizia um treinador brasileiro, com a sabedoria e clareza dos homens cultos do Brasil, que por cá andou entre os grandes e os menos grandes clubes.
2.
Ainda por amor à camisola, observo o fenómeno, servindo-me das suas fontes originais (Relatórios e Contas dos Clubes, Imprensa Desportiva, Documentos das Uniões e Federações….) e pergunto-me:
Porque caiem as equipas portuguesas antes de chegar á fase de grupos da Champions e a meio da Liga Europa? Porque o dinheiro fala cada vez mais alto e a distância entre os orçamentos das equipas é um fosso abissal que não para de crescer, a nível global e nacional. O “fair play desportivo” torna-se uma falácia e pode mesmo transformar-se num garrote na jugular dos clubes descapitalizados, que já atingiu um dos nossos “grandes” e ameaça os restantes.
O maior orçamento de um dos “3 grandes” atingia 90 milhões de euros para a temporada 2018/19. Este valor é superior à soma de 15 equipas da Liga, deixando de fora apenas os rivais diretos, com 70 milhões cada para esta época.
Comparando com alguns dos clubes europeus que colhem as vitórias:
O Liverpool tinha um orçamento quatro vezes superior (530 milhões) e plantel com o triplo do valor de mercado.
O Manchester City investiu no plantel 1.500 (mil e quinhentos milhões de euros) e levou consigo uma das joias que restava ao futebol luso.
Quando Mourinho chegou ao Manchester United, o seu orçamento já não liderava a Liga Inglesa, ficava pelos 385 milhões. O seu sucessor levou-nos um dos últimos anéis.
A lista das perdas é interminável e inclui cada vez mais treinadores.
O capital fala cada vez mais alto e chega à Europa sem escrutínio nem pátria. O fantasma da ameaça da China também aqui é útil, chega e sobra para nos distrair a atenção.
3.
Se o futebol é uma indústria, suponho que a empresa fabril que nos apresentam é a SAD Sociedade Anónima Desportiva.
Segundo a imprensa desportiva, as SAD dos “3 grandes” terminaram a época passada com um passivo conjunto de 1.118 (mil cento e dezoito) milhões de euros.
O orçamento do Ministério da Cultura, em 2019, atingiu o seu valor mais elevado, de 501,3 milhões de euros, para as Artes (As Belas Artes, Música, Teatro, Bailado), o Património (Museus e Monumentos), o Cinema e os Audiovisuais.
Digo eu, que o futebol, num país medianamente remediado, como Portugal, é o nosso luxo! Mas não a cultura.
Essa constatação, levanta duas questões: o futebol tem um enorme valor educativo e de integração social, mais do que a cultura? E rende muito mais, enquanto a cultura representa sobretudo custos?
O caso da Venezuela, demonstra bem que a desigualdade dos investimentos no futebol e na cultura não é inevitável e que o futebol não é a única nem tão pouco a melhor forma de afastar os jovens da criminalidade de rua e dos comportamentos desviantes.
Na Venezuela, a Fundación del Estado para el Sistema Nacional de las Orquestas Juveniles e Infantiles de Venezuela (FESNOJIV), é o órgão estatal venezuelano responsável pela manutenção de mais de 1722 orquestras infantis e juvenis (sendo 30 sinfónicas), 1.426 coros infantis e  juvenis, e pela educação de mais de 1.012.77 estudantes (média anual), em 2147 núcleos de iniciação musical, empregando mais de 5.000 professores,  distribuídos pelos 24 estados do território venezuelano. A maior parte dos jovens músicos de El Sistema provém das camadas mais carentes da população que, na música, encontram uma via de desenvolvimento intelectual e de ascensão social. El Sistema tem como objetivo principal a proteção social dos jovens mais pobres e também a sua reabilitação, nos casos de envolvimento com práticas criminosas, pelo que integra um programa de Orquestras Penitenciárias, além de outros programas especiais, como um programa de apoio aos hospitais e centros pediátricos, à musica popular (694 Grupos), grupos de iniciação musical (1.722), um Centro Virtual, El Centro Nacional de Acción Social por la Música/ El conservatório del siglo XXI…
Mais de 70 países seguiram este modelo venezuelano de educação musical.
Mesmo nas condições atuais de sanções e bloqueio económico imposto pelos EUA, o governo de Maduro continua a financiá-lo.
Mas porquê fazer aqui entrar a Venezuela como exemplo chave? Porque já não existe comunicação ou rede social que nos reconheça o direito à fiabilidade, pertinência e contraditório na informação, a imagem que passa da Venezuela é um exemplo entendível para quem tem de pensar na sua responsabilidade perante os dramas de um pequeno país cercado, onde vive uma comunidade portuguesa a quem devemos apoio e solidariedade.
A nossa comunicação social é hoje uma fonte de deseducação e alienação política, e o futebol está a ser manipulado com esse fim, como é tradição na história contemporânea de Portugal.
4.
Prossigamos, no futebol nacional.
As dívidas dos “3 grandes” baixaram ligeiramente na última época. As SAD respetivas estão a dever menos 27 milhões de euros (2,4%) do que em 2017/18 (1.145 milhões), uma descida que compensa a queda registada no ativo, que baixou 5 milhões de euros (0,4%), de 1,180 mil milhões para 1,175 mil milhões. Assim, há um saldo positivo entre ativo e passivo que passou de 35 para 57 milhões.
Foram as águias, entre os três clubes, quem melhor terminou a época em termos de contas. Mas o seu menino de oiro também já foi vendido. Os encarnados encerraram a época 2018/19 com um lucro de 29,3 milhões de euros, enquanto que no Dragão este ficou pelos 9,5 milhões de euros. Já os leões não conseguiram sair do prejuízo, mas melhoraram as perdas — de 19,9 milhões para 7,9 milhões.
A grave ameaça de falência que pesa sobre as suas SAD em nada se alterou com estes resultados. É certo que, no papel contabilístico, os ativos equilibram precariamente o passivo. Mas quanto vale realmente esse ativo? Em caso de necessidade, quem quer comprar um estádio, para realizar o valor do seu capital?  Veja-se o caso dos modernos, caros e abandonados estádios de Aveiro, Faro, Leiria. E qual é o valor real das cláusulas de rescisão, sobretudo em período de aperto e de inflação do número de jogadores que demandam a Europa, ainda adolescentes ou  já com escola profissional?
De acordo com o Relatório e Contas publicado em 2019, o presidente de uma das SAD dos “3 grandes”, recebeu aproximadamente 641 mil euros na época anterior e mais 500.000 em prémios.
Os três restantes administradores executivos da SAD receberam, cada um, 361 mil euros mais 280 mil em prémios.
No total, os quatro referidos administradores da SAD receberam no ano anterior mais de 1 milhão e 722 mil euros, acrescidos de 1,3 milhões de euros em prémios. O que representa 14 salários que variam entre cerca de 26 mil euros e 48 mil euros mensais, brutos.
Estas remunerações só são comparáveis aos dos presidentes dos Conselhos de Administração dos cinco maiores bancos a operar em Portugal, que, escudados no regresso a resultados positivos, depois da banca rota do setor financeiro, à época auferiam remunerações fixas anuais variáveis entre 330.000 e 750.000 euros, e, apenas dois deles, somavam uma remuneração variável adicional entre 365.000 e 585.000 euros. além de um punhado de gestores de grandes empresas, que andavam pelos 2 milhões.
No mesmo período, um médico no topo da carreira hospitalar no SNS, com a responsabilidade de Chefe de Serviço, poderia receber mensalmente um salário bruto variável entre aproximadamente de 3.000 a 5.000 euros (exclusividade incluída)
Um professor e ou investigador do ensino superior no topo da carreira, com o estatuto de catedrático e ou investigador coordenador, poderia auferir uma remuneração entre 4.000 a 5.400 euros.
Os juízes do Supremo Tribunal de Justiça e os Juízes Desembargadores, que representam um pequeno círculo acessível a uma ínfima minoria de magistrados, recebiam mensalmente um valor bruto entre 7.500 euros e 6700 euros.
O presidente da República andava pelos 7.600 euros e o primeiro ministro pelos 5.400 euros brutos, recebidos mensalmente.
Os supostos salários dos professores, dos juízes, dos motoristas, dos deputados, dos estivadores, dos médicos e enfermeiros, do setor público, andam nas bocas do mundo, inflacionados por discursos de ódio e inveja, mas esta situação anómala em qualquer “indústria” (ordenados fabulosos, mais prémios, em SADs que acumulam prejuízos superiores a mil milhões de euros) não tem nem escrutínio nem debate público.
O futebol é mesmo o nosso luxo, país moderadamente remediado!
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15 milhões e 250 mil euros, é quanto vale a entrada para os grupos da Champions A qualificação para os oitavos-de-final: 9,5 milhões de euros por clube. A qualificação para os quartos-de-final: 10,5 milhões de euros por clube. A Qualificação para as meias-finais: 12 milhões de euros por clube. Tudo somado, 35 milhões e 250 mil euros a que um dos clubes português pode aspirar nos últimos anos, mais 12 milhões, excecionalmente.
Comos são pagos bónus de desempenho por cada jogo na fase de grupos: 2,7 milhões de euros por vitória, 900 mil euros por empate, uma fase de grupos totalmente vitoriosa aumenta o pecúlio em 15 milhões.
E o fator rating da UEFA, onde um dos 3 “grandes” ocupava o 10.º lugar, de tal modo que esse clube faturou pela chegada aos quartos de final da Liga dos Campeões, em 2018/19 78,44 milhões de euros.
É realista o objetivo de atingir os quartos e meias finais? Cada vez mais difícil.
Hoje temos 4 SAD a lutar pelos 2 lugares que a conjuntura desportivo/comercial nos oferece. Uma está condenada à partida, duas vão entrar diretamente e a terceira terá de fazer pela vida na época 2020/2021.
A chegada à fase de grupos da Liga Europa concede a cada clube 2,9 milhões + um valor em função do ranking, que valeu ao clube português atrás referido 3 milhões e 285 mil euros. Se tivesse conquistado este troféu, num percurso plenamente vitorioso, obteria o prémio acumulado de 24,6 milhões. No entanto, esta situação é provavelmente irrepetível.
Os Prémios da Liga Europa são muito inferiores: Prémio por vitória (grupos) 570 mil. Prémio por empate (grupos) 190 mil. Vitória na fase de grupos 1 milhão. Segundo classificado 500 mil. Qualificação 32-avos 500 mil. Qualificação 16-avos 500 mil. Qualificação quartos 1,1 milhões. Qualificação meias 2,4 milhões. Qualificação final 4,5 milhões. Vencedor 4 milhões
Sem um ranking de topo, um percurso que chegue aos quartos-de-final, andará entre os 9 e 10 milhões.
Mas desde 2011 que não chegamos à final. A queda para a Liga Europa de um número crescente de grandes equipas europeias que superam as nossas em orçamento, é o sinal de uma tendência que se vai acentuar.
O medo e a cobiça enlouquecem os homens. A ânsia de sobreviver quebra todas as barreiras morais. A cabeça dos líderes ferve: há prémios valiosos e pessoais pelas vitórias, mas apenas pelo primeiro lugar. 
Paradoxalmente, entre um número incomensurável de horas de tempo de antena dedicadas ao confronto clubista, apenas em curtos flash se educam os adeptos para compreenderem as estratégias e as táticas do jogo da bola, a harmonia oculta dos movimentos de  uma equipa que se move como o mais complexo jogo de xadrez.
O futebol é um espetáculo onde o trabalho do jogador sem bola é invisível para a maioria dos espetadores, o mérito do treinador permanece incompreendido pela ignorância geral e a qualidade da arbitragem é um valor residual, sendo o árbitro, o primeiro alvo do discurso de ódio.
Por debaixo dos novos relvados e dos estádios monumentais, cresceu um pântano invisível, onde a rivalidade apodrece em ódio racial e clubista, se misturam negócios, interesses partidários, casos de polícia e do foro judicial,  políticos de profissão e outros a ela candidatos, ocupando as cadeiras de comentadores e os grandes planos televisivos, que nunca são gratuitos:  entram na dança dos que vêm ao futebol não pelo desporto!
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Em 2000/2001 o número de espetadores nos estádios da Primeira Liga era de 1.016.588.
A época de 2005/2006 assinala um notável aumento para 3.239.790, enquanto crescia a audiência televisiva. O impulso do Campeonato da Europa de 2004, que uniu todas as cores clubistas em apoio da seleção, foi certamente o fator decisivo para aumentar a popularidade do futebol.
Nos anos seguintes baixa e oscila entre os 3,4 e os 2,6 milhões.
Em 2014/2015 iniciava novo processo ascensional confirmado nos anos seguintes   com 3.312.225, 3.623.194, 3.654.720, até que na época passada sofre uma pequena queda, para 3.577.372.
Os novos estágios, a promoção televisiva e a recuperação económica e social do país, deverão ser considerados fatores importantes desse crescimento.
No entanto, apenas três clubes atingem médias por jogo entre os 40.000 e os 50.000 espetadores, e mais dois chegam aos dois dígitos.
No entanto, não nos iludamos. Não se pode confundir o número de 3 milhões com outras tantas diferentes pessoas. Provavelmente, a maioria esmagadora das pessoas que vão aos estádios são as mesmas, semana após semana. O inventário real dos espetadores de todos os campos de futebol da primeira LIGA, deve situar-se provavelmente  entre os 200.000 e 300.000 ano, ampliada com as centenas de milhar que se sentam à frente do ecrã.
Mas o país já não é o mesmo. Há muito que os visitantes dos museus e afins atingem anualmente a casa dos 15 milhões, a que se somam mais de 12 milhões nos monumentos, 9 milhões nas exposições, 6 milhões nos espectáculos culturais; e são estas estruturas do Turismo Cultural, insuficientemente financiadas,  que geram as mais valias do turismo, recolhidas como externalidades pelas sete Cadeias de Valor da economia do turismo, com as quais o  espectáculo de futebol já não consegue competir. E nestes números, a correspondência com diferentes pessoas é percentualmente muito maior, envolvendo um número de estrangeiros que rondará um terço.
Por força da imagem alienante que a comunicação social e as redes sociais transmitem do país, Portugal é hoje mais um país da cultura, do que um país do futebol, por mais que tal custe à minoria que nunca põe o pé num museu, num monumento, numa galeria, num palco, ou numa sala da sétima arte.
E, meus caros companheiros da bola, ser conhecido no mundo pelo futebol, nunca serviu para resolver os grandes problemas da vida de um país e do seu povo, que o diga o Portugal histórico, que lançou na diáspora o dobro dos seus cidadãos!
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Procurei neste texto as caraterísticas intrínsecas de uma nova "indústria" e não as encontrei.
Vi sim que é possível e legal inflacionar o preço de cada jogador, sem nenhum critério económico fiável, numa espiral inflacionista de pura especulação que acabará mal. Sobretudo se os governos começarem a escrutinar a origem e a natureza dos investimentos no setor e a atividade das entidades que tutelam o futebol, a obscura cadeia de intermediários e agentes, a ingerência partidária nos clubes e instituições, à luz do direito nacional e internacional.
Constatei que nada sabemos e ninguém nos informa das dificuldades e vicissitudes da imensa maioria de atletas e clubes que não estão no topo efémero da fama.
Observei que não há mercado para tantos clubes com pretensões europeias e que as suas SAD estão em risco de falência.
Conclui que as 3 SAD, atingidas pela financiarização do futebol, pela concorrência desleal de um mercado dominado por uma oligarquia financeira sem pátria, descapitalizadas, nas mãos de bancos que se tornaram estrangeiros,  e a um passo da falência técnica, em vez de tomar a iniciática de organizar uma frente nacional contra os novos donos da bola, enveredaram pela luta fratricida e sem quartel, usando todas as armas.
E que as administrações e os Conselhos de Redação da comunicação social e obscuros grupos organizados nas redes sociais, promovem o conflito entre os adeptos para alimentar o que há de mais negativo nas audiências
Questionei-me se os jovens que integram as claques e estão envolvidos em atos de violência, física e verbal, tinham consciência de que estão a ser arrastados para a alçada da justiça e podem ser condenados pesadamente por crimes graves que os marcarão para toda a vida, e pergunto-me acerca da responsabilidade dos seus líderes e dos dirigentes dos clubes que apoiam.
Reconheci que o tempo ocupado na comunicação social não deixa espaço a outros desportos, não menos importantes e populares, que singram pelo esforço dos seus atletas e dirigentes, com o que resta do amor à camisola.

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