23.5.23

O Leal Conselheiro ...

 


e a enssynança de bem cavalgar em toda a sela do poder

(Data: Indeterminada)

País: Da Jangada de Pedra

Autor: Incógnito.  “C.”

O manuscrito é um tratado sobre ética e moral destinado a ser lido por membros da corte. Acredita-se que o autor o compilou, da sua longa carreira política.

No prólogo afirma, em português arcaico, que é um "ABC da lealdade", que deveria ser como um manual prático de orientação ética para a monarquia e demais membros da nobreza (leia-se, em português moderno, os partidos do arco do poder e os seus barões), versando sobre temas tão diversos como a vida matrimonial e familiar da classe política, os pecados, os vícios e como aprimorar os sentimentos e as virtudes dos seus valetes e cortesãos.

A obra carece de uma estrutura rígida, o que é um paradoxo, face à postura do autor, observando-se ao longo de seus muitos capítulos uma série de reflexões de índole moral e ética realizadas em várias ocasiões sobre vários assuntos, incluindo cartas e "conselhos" escritos dirigidos a membros de sua família política ( estou a citar!). Apesar desta relativa falta de unidade e substância de estrutura, que a afasta dos tratados morais tradicionais, a obra impõe-se pela linguagem hermética e seca, o tom intimista e o caráter profundo do vazio dos seus pensamentos.

É de sublinhar o parágrafo em que sintetiza o seu conselho de vida: "E ssomariamente de homem a que convém teer boas bestas, e as saber bem cavalgar, se sseguem estas sete vantagens: A primeira, seer mais prestes pera servir seu senhor, e acudir a muytas cousas que lhe acontecer poderóm de sua honra e proveito (Sublinho proveito). A segunda, andar folgado. A terceira, honrado (anoto: q.b.). A quarta, guardado. A quinta, ser temydo. A sexta, ledo. A ssétima, acrecenta mayor e melhor coração” (?).

Para que dúvidas não haja: Bem servir. Servir alguém poderoso e bom traz honra. Ajudá-lo e salvá-lo quando em apuros, pode ser revertido em benefício do cavaleiro.

E prossegue o autor: “Ainda que algumas afirmações sejam repetidas, seja-me relevado, por que o faço querendo tudo melhor declarar, havendo em tal leitura menos falta em repetir, que, omitir um assunto que não deveria faltar.”

“E porque presentemente, por graça de Deus, a virtude da lealdade está outorgada em estes Reinos entre senhores e servidores, maridos e mulheres, tão perfeitamente que outros não sei nem ouço que mais e melhor dela usem, dos quais, pois Deus dessa boa graça me outorgou principal regimento ( trata-se, portanto, de uma  longa missão ungida pelo divino), me sinto muito obrigado de a sempre manter e guardar a todos, e a vós mais, por obrigação de grandes razões e requerimento de minha boa vontade.”

E concluo o muito citar, com o seu voto piedoso: “Prazer-me-ia que os leitores deste tratado tivessem a maneira da abelha que, passando por ramos e folhas, nas flores mais costuma de pousar, e dali tomam parte de seu mantimento. E não tais como aqueles bichos que, nas coisas onde tomam a sua subsistência, limpam tudo, nada ficando.”

E, termino, deixando-vos o seu olhar visionário do futuro:

Dos Soberbos

Sentem o contrário dos humildes os que continuadamente trazem ante os olhos da sua memória como são bons em virtudes, de grande merecimento ante deus, direitos servidores a seus senhores, de alta e grande linhagem, engenho e sabedoria, tendo boa prosa acerca dos amigos e servidores.

Dos Invejosos

Da inveja vem desagrado das superioridades ou igualanças que vemos nos outros quando os comparamos connosco, e contentamento pelos seus males, perdas e abatimentos. E isto mesmo se toma por ver nos outros a soberba e vanglória, enumeração das virtudes, e artes de mal fazer.

Da Guerra contra os Mouros…( o leitor tem a liberdade de atualizar a lista)

A guerra dos mouros tenhamos que é bem de fazer, pois que a santa igreja assim o determina, e não dá lugar a fraqueza do coração que não haja escrúpulos quando os não se deve ter. E sobre ela eu vi fazer uma questão que por eles se dizia ser feita desta forma.

Do Humor Melancólico

Por quanto sei que muitos foram, são, e serão tocados deste pecado de tristeza que procede vontade desconcentrada, que ao presente chamam em mais dos casos doença de humor melancólico, do qual dizem os médicos que vem de muitas maneiras por fundamentos e sentimentos desvairados, - mais de três anos (um número controverso da transcrição do latim, alguns autores dizem ser 9 anos) pois já mais seguidos muito dele padeci, e por especial graça de nosso senhor deus me pôs de perfeita saúde.

…/…

E eis que finalmente me contenho, em tanto transcrever, seguindo dois dos conselhos principais: 

Da Arte de Ler

Não leias muito de uma só vez…E isto para entenderes melhor o que lerdes, para o recordares durante mais tempo e para te enfadares menos dele.

Vantagens Sociais da Arte de Cavalgar

Destas artes aqui descritas, que a cavalo se costumam fazer, escrevi assim largamente por algum costume e grande afeição que delas houve, e bem assim das outras artes de força, agilidade e uso de armas de arremesso, que os cavaleiros e escudeiros nesta terra muito avantajadamente sabiam e usavam de fazer.

Nesse tempo remoto, as armas de arremesso não eram a crise ambiental, o reascender da guerra, a pobreza extrema e a pobreza mesmo entre os trabalhadores, a concentração da riqueza nos fundos abutre, o abandono do mundo rural, a corrupção dos partidos democráticos e o nascimento no seu berço das sementes do ódio extremista… a alienação, pela comunicação e pelas redes sociais.

E foi assim que chegámos ao presente, cegos, quase cegos, todos, quase todos, como escreveria, José Saramago e já antes dele, Alexandre O’Neil.

 

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