19.9.21

Autárquicas: A síndrome da avestruz

 O abandono do Mundo Rural e da Regionalização

“O debate político está reduzido, na notícia e no comentário, à funalização das eleições. Como se não houvesse programas eleitorais e estes não expressassem os interesses de classes e grupos sociais.

A fulanização do debate político e das eleições, é uma das formas modernas de alienação política.”

Francisco Caldeira Cabral, o pai da arquitetura paisagista em Portugal, escreveu há quase sessenta anos, na altura em que foi eleito presidente da Federação Internacional de Arquitetos Paisagistas, estas palavras proféticas:

É tempo de afirmar que se a cidade é indispensável à organização da sociedade e ao progresso da humanidade, se a indústria muito tem contribuído para facilitar a vida e lhe dar conforto, é da paisagem rural que depende a sobrevivência da humanidade, porque é ela com o mar, a única fonte de alimentos, a única fonte de água potável, e o último suporte de atividade biológica autónoma e equilibrada, indispensável à continuação da vida na terra. Por isso a atividade da Sociedade Rural é a única que continua a ser obrigatória, sendo todas as outras facultativas, quer a sociedade urbana-industrial se aperceba ou não desse facto.                                                                                               

            No debate televisivo, que animou a pré-campanha das candidaturas, desfila a lista de carências que são comuns às cidades litorais e do interior do país, mas os concelhos, vilas e aldeias. que estruturam o mundo rural foram excluídas do debate político…por “critérios jornalísticas”, dizem as redações: de facto, porque o tempo do mais importante meio de comunicação social está reservado para a propaganda comercial e partidária, e é um negócio, não um bem comum.

            O discurso do primeiro-ministro, que apontava a proximidade do mercado espanhol como uma vantagem para os empresários do interior e a interioridade de Madrid como um fator irrelevante para o seu desenvolvimento, mostra que conhece mal a história peninsular e menospreza  a dimensão da crise social e ambiental que a agonia do mundo rural traz consigo: a devastação de eucaliptais, pinhais e matos, provocada pelos incêndios e agravados pela instabilidade climática, a progressiva improdutividade dos solos agrícolas industrializados  e salgados pelas monoculturas,  o avanço do deserto, a sul,  o desaparecimento das florestas endógenas e prados de montanha, sumidouros de carbono, a redução e poluição dos lençóis de água potável,  o ermamento…, não são notícia nem tema para debate autárquico, mesmo dos que mais sofrem e sofrerão ainda mais com essa tragédia. A vaga promessa da criação de 25.000  postos de trabalho, não chega, pouco vale para conter o desaparecimento dos camponeses, a sangria da emigração e o crepúsculo da baixa natalidade.

O governo e o seu líder, evocam Madrid, mas não tiram do seu historial as lições que permitiram transformar a atalaia moirisca na capital do reino da Espanha. Madrid ganhou  foral de município no início do séc. XIII e no séc. XIV estatuto autonómico, em que só os regedores locais governavam. No séc. XVI, passou a ser uma vila de apoio aos coutos de caça da realeza, onde temporariamente assentava arraial. Filipe II de Espanha e I de Portugal, instalou ali a sua corte, recentrando a geografia do poder real sob todas as nações da antiga Hispânia. Mas Madrid tinha-se tornado num local escuro, triste, sujo, doentio e pestilento: a construção do seu Alcazar Real e depois dos seus Palácios e Jardins modelados por Versalhes elevaram-na à condição de cidade real europeia, mais tarde, centro industrial e da rede dos caminhos de ferro que trouxeram consigo a idade moderna. E na Espanha democrática, tornou-se uma Região Autónoma entre as autonomias. 

Tiremos nós as lições:

Autonomia, sustentada com todos os recursos políticos e económicos necessários.

O plano de desenvolvimento traçado e suportado pelo poder central, participado, mas não cometido aos locais.

O comboio, que regressa agora por razões ambientais, como motor do progresso, mas que numa nova era tecnológica carece da companhia dos aeroportos internacionais de proximidade às Regiões. O mercado já não é Espanha, mas a União Europeia e mais longe. E o espaço, é espaço-tempo de menos de uma hora, entre o aeroporto e o destino.

Autonomia, com o fracasso das políticas de desenvolvimento do interior do país no que respeita ao mundo rural, que agoniza, mas ainda pode renascer, hoje e face aos desafios do futuro, não quer dizer apenas reforço da descentralização e da municipalização, mas também regionalização.

As Regiões Plano

 Estratégia para aprofundar a democracia política e promover o desenvolvimento harmonioso e sustentável do país

Aparentemente, nem um só candidato às eleições autárquicas associou o seu programa eleitoral de combate ao subdesenvolvimento e pelo progresso sustentável, à estratégia de criação das Regiões. A exceção foi o discurso do líder do PCP em Viana de Castelo, porventura noutros locais, mas a comunicação social é hostil à CDU e o programa daquele partido não passa para a sociedade. 

Um clamor violento de sofismas antirregionalização ecoa ainda na nossa consciência coletiva e nos meios de comunicação e redes sociais: A regionalização criaria mais uma camada de burocratas gastadores. Não é possível estabelecer critérios para definir a geografia regional. A criação de novos órgãos de representação democrática  seria uma duplicação que iria  retirar poder às autarquias…

Associar a regionalização a uma estratégia para aprofundar a democracia política e promover o desenvolvimento harmonioso e sustentável do país, através da criação das Regiões Plano, pode evitar e ultrapassar esses riscos, com base em 8 princípios:

1.  _  A criação das Regiões é um imperativo constitucional, há demasiado tempo adiado. A responsabilidade, partilhada, pela sua concretização, pertence ao Presidente da República e ao Governo da República e à Assembleia da República, que dela emana.

2.  _ O consenso estabelecido em torno da constituição das entidades regionais de turismo, resolveu o problema da geografia das regiões.

3.    _ A história da democracia e do municipalismo nacional conferem à Regionalização em Portugal uma natureza específica, que torna imperativo que a estrutura legal da Região seja original, com características portuguesas: os municípios devem estar diretamente representados, pelos seus presidentes, na sua Câmara Alta, ou Senado Regional, enquanto a Câmara Baixa, ou Assembleia Regional, deve ser eleita diretamente por todos os cidadãos eleitores, a partir de uma lista nominal de candidatos.

4.      _ O Presidente do Governo Regional e os seus Secretários políticos, serão eleitos por maioria simples na Assembleia Regional.

5.     : O Senado Regional terá poder de aprovação e veto sobre o Orçamento e Plano de Desenvolvimento Regional, proposto pelo Governo à Assembleia Regional.

6.     _ Os membros do Senado não serão remunerados, por desnecessário, já que possuem vencimento e ajudas de custo próprias do exercício do seu mandato municipal.

7.      _ Os membros do Governo Regional poderão optar por receber um vencimento em exclusividade que não pode exceder o salário médio regional, ou manter a sua atividade profissional, devendo ser criado um Código de Érica que proíba conflitos de interesses e incompatibilidades. Os membros das Assembleias Regionais terão apenas direito às ajudas de custo equivalentes ao exercício de funções de representação, ao nível das Assembleias Municipais.

8.     _ O Governo da República assegura o orçamento autónomo através do orçamento nacional e das fontes em uso na gestão pública, tal é o caso dos fundos comunitários.

_ Os custos de lançamento deste projeto devem ser estruturados, ao longo dos anos, numa verba prevista pelo PRR - Plano de Recuperação e Resiliência.

A fulanização das eleições, é uma forma de alienação política

Em meados do século passado, os antropólogos portugueses  deram um contributo essencial no congresso mundial desta ciência, para a sua transformação numa ciência que investiga e estuda não apenas as culturas primitivas mas o devir da cultura humana nas sociedades modernas.

Num trabalho intitulado  A Etnografia como Ciência, Jorge Dias equaciona os riscos de rotura cultural e do desaparecimento do património do mundo rural face à predominância na cultura contemporânea do elemento dinâmico, como produto da revolução técnico-científica e da comunicação, em paralelo com uma atitude de menosprezo "pelas formas de visa rústica" das elites dos países essencialmente agrícolas.

Este verniz urbano, que nos últimos decénios conduziu as elites políticas a disfarçar a sua ascendência rural, foi finalmente estalado pela proliferação dos danos ambientais e  pandemias nos espaços urbanos e o elevar da consciência ambiental nas novas gerações.

Mas tal acontece, provavelmente tarde demais: a maioria dos autores e interpretes da chamada “música popular”, promovidos na TV e na rádio, desconhecem a nossa verdadeira tradição musical, que Giacometti e Lopes Graça. Zeca Afonso e Amália, Vitorino de Almeida e outros, salvaram do esquecimento e valorizaram; aqueles compositores e interpretes romperam com ela, com a aprovação das administrações televisivas. A Assembleia da República tem as suas comissões da agricultura e do ambiente, mas já não distingue o verde da floresta multissecular e bio diversa, das monoculturas industriais sinistramente silenciosas e cobertas pelo verde estéril dos fetos. Os presidentes da câmara mudam as suas residências familiares para a cidade universitária para onde partirão os filhos. Os quadros, empregados e trabalhadores deixam ruir as residências dos avós, enquanto o mato invade os quintais e belgas e trocam as casas de pedra dos país pela caixa de cimento armado da cidade mais próxima.

Primeiro fecharam as escolas primárias. Depois os postos médicos e os lares nas freguesias. Mas ninguém se importou com isso no Terreiro do Paço e nas Comissões de Coordenação Regionais, aliás, sem poder suficiente para suster cada ciclo de derrocadas. Depois fecharam bancos, consultórios de advogados e médicos. Os centros comerciais chegaram a cada sede de concelho, e fecharam mais lojas do comércio local. Entretanto, as grandes empresas da celulose vieram em força, compraram terrenos baratos, alugaram os que quiseram, colocaram entre si e os pequenos proprietários uma nova classe de empreiteiros, e impuseram a todos os seus preços, tal como fizeram outras, vendedoras de paletes…concentraram a propriedade e criaram um cartel tão vasto como nunca existira no país.

Os excursionistas estrangeiros, de passagem pelas regiões rurais, foram confundidos com turistas, mas à noite continuaram a regressar às cidades e às regiões destino onde o seu avião aterrou..

Foi então que cresceram os incêndios trágicos, e os seus ciclos de destruição e morte, prevalecendo o mito de que tudo seria resolvido com a limpeza e boa gestão de eucaliptais e pinhais…eucaliptais das celuloses que arderam também, e em grande, se o termo de comparação for feito entre plantações de eucaliptos sob sua gestão e as outras,  e não usando a comparação falaciosa com as áreas globais ardidas, matos, maioritariamente.

E vieram os empresários e empresas estrangeiras para comprar quintas no Douro, constituir novos latifúndios no Alentejo, consumindo hoje o solo e a água que faltará manhã, talvez em menos tempo do que uma geração. E contrataram novos proletários rurais, vindos dos confins da Ásia, não só a Sul…E vieram pequenos grupos de estrangeiros, por sua conta, sem qualquer programa de apoio e incentivo à sua imigração cultural e profissional.

Esta agonia, este progresso efémero_ à luz do tempo histórico e não da espuma dos dias, cria emprego e rendimentos, para os homens e mulheres que continuam a viver no mundo rural e não têm outra escolha.

Gritos esporádicos de denúncia e proclamações de reformas radicais, ascendem-se na ribalta política e televisiva das cidades, mas duram o tempo de um fósforo!

Pergunto-me de novo: porque razão a regionalização só emergiu no discurso autárquico do PCP? E com que peso, nas suas alternativas? Nunca o saberemos: a vida económica, política e social da nação, não vem nos jornais, televisões e redes sociais.

O debate político está reduzido, na notícia e no comentário, à fulanização das eleições. Como se não houvesse programas eleitorais e estes não expressassem os interesses de classes e grupos sociais.

A fulanização do debate político e das eleições, é uma das formas modernas de alienação política.


3 comentários:

Unknown disse...

Gostei

Mário disse...

Uma reflexão interessante. já agora, é de corrigir a fulanização... de fulano, penso eu...

AdSQ disse...

Correto