23.11.11

A manifestação dos militares de 12 de Novembro e a democracia

“…O significado político da sua manifestação e falo como paisano, comparo-a à grande manifestação dos professores contra a política do anterior governo, que foram capazes de superar divisões e preconceitos, ocupando o lugar das vanguardas burguesas e operárias que agiam em defesa, não apenas dos seus interesses de classe, mas do que consideravam causa pública e nacional.”

Os direitos democráticos

A democracia nada tem a temer dos militares quando estes usam as armas da democracia, como a manifestação pública ou o discurso político. A democracia moderna reconhece aos cidadãos militares os seus direitos políticos associativos. O mesmo se aplica às forças militarizadas. A exigência de neutralidade partidária das forças armadas e militarizadas é outra coisa.

A afirmação de que as forças armadas se manifestam no campo de batalha, mesmo que suportada com a força moral de quem já combateu, num mundo dominado pelas guerras de conquista e pela disseminação das tecnologias militares do holocausto nuclear ou químico, em que os militares são igualmente vítimas, é, no mínimo, redutora da condição militar contemporânea.

No caso português a missão estratégica das forças armadas, no quadro do nosso estado democrático e constitucional, deve orientar-se para evitar a guerra e proteger a soberania nacional, que é sobretudo território marítimo (1.800.000 Km2 para 92.000 Km2 de território continental), para a Defesa Civil, para enfrentar as catástrofes humanitárias e contribuir para as tarefas de pacificação dos conflitos internacionais, estendendo esta cultura política às forças policiais e a todo o aparelho repressivo do estado.

A Ética e a condição militar

A condição militar, numas Forças Armadas cada vez mais instruídas, cultas e integradas socialmente, levanta também um problema ético fundamental. A legítima defesa da vida, quando ameaçada de morte, conduz o ser humano ao mais terrível dos dilemas e, como ele, as nações democráticas: não desarmar a democracia significa substituir o exército de caserna e mercenário por um corpo de profissionais e voluntários politizado, interclassista, preferencialmente assente no serviço militar universal apenas limitado pelo respeito devido aos objectores de consciência e outros pacifistas ( a extinção do denominado “serviço militar obrigatório” é, na minha modesta opinião, um passo atrás na democratização das forças armadas e um erro crasso da esquerda); forças armadas onde prevaleçam igualmente os Direitos Humanos e as liberdades e direitos fundamentais da democracia. Partidariamente neutrais e orientadas estrategicamente para evitar a guerra e proteger a soberania nacional, para a Defesa Civil ( onde se insere não apenas o enfrentar das catástrofes humanitárias, mas também o combate aos incêndios, apoio às forças de segurança no combate ao crime organizado e o combate contra o terrorismo) e para as tarefas de pacificação e resgate dos conflitos internacionais, estendendo esta cultura às forças policiais e a todo o aparelho repressivo do estado, como se disse no início desta crónica e aqui se sublinha. Cada avanço na democratização das forças armadas e policiais, na sua consciência política democrática e ambiental, tal como o reforço do direito internacional e a democratização do aparelho judicial à escala do país, resultarão num ganho estratégico contra a ameaça de corrupção e poder arbitrário das oligarquias, a guerra civil fratricida e o holocausto atómico ou bioquímico da Humanidade.

Nelson Mandela escreveu no seu Diário Íntimo:

“A situação real no terreno pode justificar o recurso à violência, que mesmo os homens e mulheres bons podem ter dificuldade em evitar. Mas mesmo nestes casos a utilização da força deverá ser uma medida excepcional, cujo objectivo primordial deverá ser o de criar o ambiente necessário para soluções pacíficas. São estes homens e mulheres bons que constituem a esperança do mundo. Os seus esforços e os seus feitos são reconhecidos para além da morte, mesmo para além das fronteiras dos seus países, tornam-se imortais”

Frederico Engels elaborou este mesmo ideário ainda no século XIX, na sua reflexão crítica sobre as ideias do professor Dhüring e acerca do papel da violência na História. A história marxista guardou-lhe um lugar na sombra de Marx e deixou de ler e estudar o seu magnífico e original pensamento, acerca do papel do trabalho na transformação do macaco em homem, a origem da família, da propriedade e do estado, que resgatou o matriarcado e negou o fatalismo histórico que condenava a mulher à subalternidade social, acerca da questão camponesa, que impunha aos revolucionários operários e intelectuais o dever de lutar contra a destruição da pequena propriedade rural brutalmente esmagada pelo crescimento capitalista…

Façamos agora votos para que Mandela atinja a imortalidade.

A crítica

O jornal "Público" escreve que um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o âmbito do direito de manifestação dos militares, defende que os militares no activo não podem manifestar-se em protestos que "tenham por finalidade efectuar reivindicações em matéria de estatuto socioprofissional, como forma de pressionar os órgãos do poder legislativo e/ou executivo e de exigir que estes as negoceiem e aceitem". Estas situações, consideram os conselheiros, integram questões de "natureza materialmente sindical" e os militares em efectividade de serviço não podem participar em manifestações deste tipo. As associações socioprofissionais das Forças Armadas mostram-se preocupadas com esta interpretação, num período que, dizem, se anuncia conturbado.

O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República é formado pelo procurador-geral da República, que preside, e por procuradores-gerais adjuntos, em número constante de quadro aprovado pelo Ministro da Justiça, sob proposta do Conselho Superior do Ministério Público. Actualmente, é de nove o número de membros do Conselho. Ou seja, é um órgão de natureza técnico-política, que emite um parecer técnico e político, no caso associando a manifestação a questões sindicais. Convirá então olhar primeiro para as reivindicações expressas na manifestação dos militares. Recorremos de novo à imprensa: As palavras de ordem, expressas em cartazes empunhados pelos manifestantes, foram: «Dignificação da condição militar», «Redução de efectivos + congelamentos = desarticulação das Forças Armadas», «Não à descaracterização da instituição militar» ou «Não à destruição da saúde e condição militar». «Amnistia aos militares castigados por delito de opinião». Trata-se de consignas de natureza intrinsecamente políticas, apartidárias, mesmo quando pontualmente materializadas em questões sócio-profissionais.

Em nome do direito ao contraditório, importa também ouvir o discurso directo dos militares: «O protesto não se deve só a motivos remuneratórios, mas está relacionado com os direitos derivados da condição militar, que estão gradualmente a ser retirados», disse o presidente da Assembleia Geral da Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA), para quem estes direitos «não são um favor». Para Castanho Pais, «em todos os estados civilizados» há direitos especiais para os militares, mas em Portugal os militares «estão a ser tratados como meros funcionários públicos. Pede-se aos militares para defenderem a pátria, e se for preciso perderem a vida. Isto não se pede aos funcionários públicos». É uma forma clara de explicar a diferença ao cidadão comum. E a redução do dispositivo militar tem de garantir a dignidade e os direitos dos seus militares, porque a democracia tem uma dívida de sacrifício, de sangue e de luto, para com as gerações de militares que tiveram de fazer a guerra colonial.

Falando na conferência sobre o Futuro na Europa, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, Mário Soares afirmou que há uma “relativa conformidade” enquanto as manifestações forem dirigidas pelos sindicatos, porque fazem parte do “jogo político e social”. “Mas desta vez deu-se um passo muito importante. Temos uma manifestação dos militares. E não é uma coisa fácil, é algo que deve impressionar as pessoas, que têm de reflectir e têm de agir, dizendo o que pensam e insistindo para que as coisas tomem o seu caminho”, argumentou.

Na minha leitura dos factos, os ilustres magistrados não demonstraram a natureza essencialmente sindical do protesto e o antigo Presidente da República limitou-se a reconhecer um facto histórico novo: a chegada dos direitos democráticos aos cidadãos militares, que, como cidadãos, os tiveram que tomar nas suas próprias mãos…desarmadas no acto e sublinho, desarmadas!

Na minha opinião, política, devemos saudar este passo no sentido da democratização das formas armadas (e militarizadas) e compreender que o direito, mesmo quando legitimamente interpretado, está sempre um passo atrás no fluir da vida social.

Mário Soares defendeu, na altura, uma “ruptura” e o fim do domínio dos mercados: “Os mercados não podem mandar nos Estados, são os Estados que mandam nos mercados. Mas o que sucede é que muitos dos dirigentes dos Estados estão feitos com os mercados”.

É neste contexto, que teremos de reconhecer que as ameaças à democracia vêm hoje, não das manifestações dos militares, mas de um outro do poder acima da lei, do direito, da moral, da ética e da economia, que o sistema financeiro internacional em crise representa, impondo aos partidos antecipadamente o programa dos vencedores das eleições (como aconteceu em Portugal), ou derrubando os líderes eleitos e escrutinando os seus sucessores sem eleições, como no caso da Irlanda, depois na Grécia, depois a Itália e depois…?

E tudo isto se reflecte nas nossas vidas, na sua qualidade e na nossa esperança de vida: Pois não é verdade, que, por imposição da Troika e da linha política seguida por Passos Coelho, o Orçamento de Estado do anterior governo e o actual, se dispõem a gastar no buraco do BPN até 8 mil milhões de euros, enquanto que para as forças militarizadas só ficam disponíveis 7 milhões, dos 50 que seriam necessários para corrigir “as injustiças” (as afirmações entre aspas são dos governantes) e reconhecer “os direitos legais” dos polícias-cidadãos? E esta quantia ou a que reivindicam os militares (e que o actual ministro da defesa reconhece como devidos) não é uma ínfima parte daquele escandaloso esbulho dos fundos públicos, dos impostos pagos pelos cidadãos e do valor produzido pelo trabalho nacional?

No protesto, segundo a organização, estiveram “mais de dez mil”, entre generais, almirantes na reforma, sargentos e praças. Não foram gritadas palavras de ordem. A moção aprovada no final da manifestação convocou uma vigília tendo por objectivo “sensibilizar o Presidente para que não promulgue o Orçamento do Estado”, que, no nosso quadro constitucional, é o comandante supremo das Forças Armadas.

A comunicação social associou a manifestação às declarações de Vasco Lourenço, também presente no Rossio, que acusou o Governo de ser um “bando de mentirosos”, epíteto que entrou na rotina do debate público e institucional e apelou aos militares para defenderem a população em caso de “repressão” por parte das forças de segurança nas manifestações agendadas “como se passou no Egipto”.

E às de Otelo Saraiva de Carvalho: “Para mim, a manifestação dos militares deve ser, ultrapassados os limites, fazer uma operação militar e derrubar o Governo. Não gosto de militares fardados a manifestarem-se na rua. Os militares têm um poder e uma força e não é em manifestações colectivas que devem pedir e exigir coisas", terá dito.

Otelo tem um pensamento político “putschista”, que ressurge ciclicamente em, épocas de crise, à esquerda e à direita do sistema político. A crença de que um pequeno grupo de homens determinados e armados, através de um golpe militar, pode mudar o destino de uma nação e conduzi-la para um ideal maior, conduziu, à esquerda, aos primeiros movimentos nacionalistas do Egipto ou da Líbia, mas também, à direita, às ditaduras militares da América Latina e da Grécia dos coronéis. No caso do nosso 25 de Abril, que Otelo teria comparado à actual situação do país, esta visão da Revolução Democrática de 1974 manifesta uma total incompreensão política acerca do facto histórico em que assumiu o papel de destacado protagonista.

A guerra colonial foi o maior crime do regime fascista de Portugal. Custou à nação portuguesa cerca de 9.000 mortos e mais de 100.000 feridos e fez um número superior de baixas nos povos e guerrilheiros das três frentes militares, Angola, Moçambique e Guiné. Foram 13 anos de esforço de guerra e também de perca de imensos recursos financeiros, num país que continuava a ser o mais atrasado da Europa ocidental. Portugal não é um país de brandos costumes e o que caracteriza o seu povo é uma grande capacidade de sofrimento. O exército americano, líder em tecnologia e recompensas financeiras, não aguentaria 1 ano de guerra em África nas condições em que os nossos militares suportaram 13 anos.

Mas a guerra colonial foi o factor decisivo na refundação da democracia em Portugal: gerou um movimento político no seio das forças armadas, de capitães e outros oficiais e depois de milicianos e soldados, que tomaram consciência de que a guerra só tinha uma solução política e essa passava pela democracia, a descolonização e o desenvolvimento social.

O povo português ficou a dever muito à coragem dos militares de Abril, mas muito mais aos mortos e às vítimas civis que, dos dois lados do conflito, conduziram o regime fascista ao isolamento internacional e á perda da sua base de apoio popular.

Todos nos devemos inclinar perante essa memória trágica, que comporta uma lição actual: a guerra é a pior solução para os conflitos políticos e pode ser evitada; todas as guerras, conduzem sempre a uma solução política.

A descolonização, objectivo prioritário da revolução de Abril, provocou o regresso à metrópole de mais de 500.000 retornados, a maioria pertencente às classes trabalhadoras e à pequena burguesia, incluindo funcionários e empresários que perderam a maior parte dos seus bens, abrindo então os mercados coloniais a novas potências. Não obstante e graças à sua cultura de trabalho e empreendedorismo e em conformidade com o espírito de solidariedade que predomina na consciência popular nacional, e também com medidas de apoio dos governos democráticos pós-25 de Abril, a integração foi total e exemplar, contrastando com outros casos europeus, marcados pelo sectarismo, a intolerância e até o confronto violento.

A democratização do país e a descolonização não mudaram apenas a correlação de forças no sul da África, em resultado da independência de Angola e Moçambique (1975), que deixou a Rodésia racista sem retaguarda, deu apoio à independência da Namíbia e isolou o regime de apartheid da África do Sul.

A derrocada dos regimes fascistas, militaristas e do apartheid contemporâneos, tal como depois no Leste, seguiria então um processo semelhante ao da revolução democrática portuguesa, impulsionado por crescentes ondas de manifestações e protestos populares pacíficos, que enfrentaram a repressão e enfraqueceram as ditaduras militares e oligárquicas, da Espanha à Grécia, ao Chile e Argentina, na Indonésia e Timor ou na África do Sul, talvez porque a revolução democrática tardia, no Portugal colonialista e fascista, que fez estremecer a Europa em 1974/75, tenha avisado as classes dominantes que a luta pela democracia e pela paz pode conduzir aos mais imprevisíveis resultados.

O pensamento político de Otelo, ignora e não entende as lições da nossa própria história. O grupo de militares que com Humberto Delgado tentou derrubar o regime fascista em 1961, não era menos corajoso que os seus herdeiros políticos, e fracassou porque não se apoiava na luta do movimentos popular nacional e colonial: Otelo, mesmo quando celebra a revolução dos capitães, esquece a luta de guerrilha em Angola, depois Moçambique e a Guiné, que desgastou as Forças Armadas e fez emergir do seu seio generais dissidentes e jovens oficiais revoltosos. E omite a espontânea vaga popular que alastrou pelo país, erguendo seculares e novas reivindicações de liberdade, pão, paz, saúde e habitação. Felizmente que a História, na sua humana e piedosa compreensão sobre as nossas humanas fraquezas e erros, registará do homem, o feito revolucionário, mas não as suas palavras ilusórias.

A manifestação dos militares, na sua forma, organização e conteúdos políticos e a vigília programada, constituem contributos válidos para o alargamento da democracia e contra o golpismo anti-popular, tenha ele a cor que tiver e neste contexto, representam um notável contributo para a evolução da democracia na Europa e no mundo.

O significado político da sua manifestação e falo como paisano, comparo-a à grande manifestação dos professores contra a política do anterior governo, que foram capazes de superar divisões e preconceitos, ocupando o lugar das vanguardas burguesas e operárias que agiam em defesa, não apenas dos seus interesses de classe, mas do que consideravam causa pública e nacional.


1 comentário:

acmc52 disse...

Caro amigo, aqui vai um abraço e votos para que o reencontro seja a curto prazo, já que tem andado fugidio, devido a várias contrariedades que o tempo nos prega.

Quanto ao artigo, tu sabes que não concordo com parte das tuas ideias, até pela minha condição, como te manifestei, tardiamente na mensagem ou e-mail, que te enviei.

Da leitura nasce a luz e da discussão nasce o desenvolvimento.

Continua com as tuas reflexões que serão o mote para as nossas.