Quanto às denúncias da especulação empresarial, a montanha pariu um rato!
Mas quando às causas da difusão da pandemia no nosso país, a apresentadora, sem contraditório, ocupou o programa a desautorizar a Autoridade Nacional de Saúde e a própria Organização Mundial de Saúde.
Definida a estratégica à
priori, era preciso encontrar o ponto fraco para a ação tática: a máscara, ou a
sua ausência.
Ir buscar uma referência internacional: os países asiáticos. Como sucedâneo do contraditório, extratos das comunicações televisivas do Ministério da Saúde e da Direção Geral de Saúde. Invocar a autoridade dos médicos: um curto depoimento, do bastonário da Ordem dos Médicos e uma entrevista a um clínico da especialidade. A que se somaram algumas perguntas sobre as máscaras e as medidas, colocadas a dois entrevistados á distância, na República Checa.
Consultou o Ministério da Saúde para selecionar os conteúdos das comunicações que escolheu? Não me parece. Conheciam os outros quatro protagonistas o alinhamento da peça, o seu objetivo estratégico: provavelmente, não! O que disseram ou do que disseram, ficou uma impressão vaga, algo fora da narrativa, mas que colocada no contexto certo, funcionou, para o já aterrorizado espetador, como uma confirmação ”Horror, e eu sem máscaras em casa!” Ou como um alívio: ”Ainda ali tenho umas dúzias, que comprei/açambarquei a tempo!”
Num golpe de prestidigitador,
tirou da cartola, para um estudo comparado, o caso…da República Checa? Porquê?
Argumento científico(?) base: porque é do mesmo tamanho que
Portugal! Segundo argumento
científico (?): a pandemia chegou lá ao mesmo tempo, mas o governo checo tomou mais cedo e com mais severidade as medidas necessárias…sobretudo a máscara!
O que omite, é que nos países do Leste europeu os números da pandemia são generalizadamente baixos, e que se comparasse os valores da República Checa com os valores desses países, verificaria que a República Checa está em segundo lugar no número de casos confirmados e no número de mortos: 53 falecimentos, contra 94 da Ucrânia; 4.099 casos confirmados, contra 4.149 da Rússia, na data do programa, 03 de abril! A Eslováquia, que com a República Checa integrava até à queda do muro muro a Checoslováquia, apresenta 450 casos confirmados e 1 morto! Letónia, igualmente 1 morto. Bielorrúsia, 4. Croácia e Moldávia, 8 falecimentos. E por aí adiante, com a Sérvia, a Ucrânia e a Croácia, a variar entre os 1.000 e os 1.500 casos confirmados, e todos os restantes países do Leste da Europa abaixo do milhar ou mesmo com escassas centenas. Protegidos sim, e por hora, pelo seu afastamento dos focos de contaminação europeia e por fatores específicos que não são do âmbito deste contraditório.
Consultemos a embaixada da República Checa, para conhecer as medidas tomadas no seu global:
A 10 de março de 2020, o Ministro da Saúde emitiu uma medida de emergência para impedir a propagação do COVID-19 na República Checa. Lituãnia 9.
Todas as pessoas que não têm residência permanente ou temporária na República Checa ou que não trabalham lá são obrigadas a suportar o controlo dos sintomas de doenças infecciosas após entrar na República Checa.
Para estrangeiros com residência permanente ou temporária, ou para aqueles que trabalham na República Checa, permanece válida a obrigação de relatar imediatamente, após o seu retorno da Itália esse mesmo facto ao seu médico (de clínica geral) e submeter-se a quarentena.
O turismo internacional
continuava, sujeito ao controle sanitário!
Vejamos alguns dos seus estratos:
The government has also supplemented an
existing extraordinary measure by banning the attendance of the public at
selected premises. With effect from 14 March 2020 at 6:00, the ban will also
apply to swimming pools and tourist information centres. Indoor and outdoor
sports grounds may be used only on condition that no more than 30 people can
occupy them at any one time. As of 14 March 2020 6:00, retail sales at market
places and street markets are also prohibited.
Os recintos desportivos continuam a poder ser utilizados, com limitação a 30 pessoas! Só nesta data, 14 de março, é que as piscinas e centros de informação turística foram encerrados ao público!
The government has also considered the situation in prisons and has decided that with effect from 14 March 2020 there is a ban on visits to those in detention, to convicts and inmates for the duration of the state of emergency in prisons and security detention facilities
Até 14 de março, eram permitidas as vistas às prisões!
As part of the declared state of emergency, the
government also imposed on full-time students of tertiary professional schools
and universities in educational disciplines focused on social work and social
pedagogy … the obligation to secure the provision of care in social services
facilities. The government will announce any specific engagement of students on
a operational basis in cooperation with the governors and the Mayor of Prague.
Isto é, o governo preparou o quadro legal para
envolver os estudantes dos níveis superiores das áreas sociais, para participar
ativamente nas ações de combate à pandemia.
Contrariamente a opinião da
apresentadora do programa, o governo da República Checa excluiu Portugal da
lista dos países que o corona19 transformou em fontes de contágio de alto
risco:
in addition to Italy, also apply from 13 March at 12.00 to other
selected high-risk countries, which are currently China, South Korea, Iran,
Italy, Spain, Austria, Germany, Switzerland, Sweden, the Netherlands, Belgium,
the United Kingdom, Norway, Denmark and France.
Em nenhum destes documentos oficiais o uso de máscaras é referido, não como medida estruturante da luta contra o Corona19, nem de outro modo. A decisão viria mais tarde, após a tomada de outras medidas consideradas essenciais.
Em nenhum destes documentos oficiais o uso de máscaras é referido, não como medida estruturante da luta contra o Corona19, nem de outro modo. A decisão viria mais tarde, após a tomada de outras medidas consideradas essenciais.
O alegado atraso e complacência, das medidas tomadas em Portugal
Recordo agora que o decreto do Presidente da República, que declara o estado de emergência em Portugal, é de 18 de março e que só o presidente tem este poder, mediado pela Assembleia da República, o governo de Portugal não o pode decretar por sua decisão autónoma.
Recordo agora que o decreto do Presidente da República, que declara o estado de emergência em Portugal, é de 18 de março e que só o presidente tem este poder, mediado pela Assembleia da República, o governo de Portugal não o pode decretar por sua decisão autónoma.
Mas que, o Conselho de Ministros
de 12 de março de 2020, exatamente o mesmo dia em que reuniu o governo checo,
aprovou um conjunto de 30 Medidas extraordinárias de resposta à epidemia do
novo coronavírus, que não são nem menos severas, nem mais permissivas que as do
seu congénere. De tal modo, que foi possível decidir nessa data o
encerramento de todas as escolas, que ocorreu na prática no fim de semana de 14 de março. As visitas a hospitais, lares e
prisões no Norte foram proibidas a 7 de março e logo extendidas a todo o país,
obviamente antes da data decidida pela República Checa. No dia 16 de março era
reposto o controle das fronteiras. A Liga de Cubes já antes suspendera os
campeonatos da 1ª e 2ª Liga, no dia 12 de março, sobre pressão dos jogadores, da opinião pública e das medidas do governo.
Estamos pois perante uma perigosa
mistificação, que mina a confiança na autoridade dos serviços de saúde de
Portugal e da própria OMS, desviando a atenção dos cidadãos para o impulso egoísta
e ilusório da corrida às máscaras, questão que abordaremos em seguida.
É um facto que em todos os países
onde o acento tónico se colocou na aquisição de máscaras pelos cidadãos, ajudou à escassez do produto para os profissionais de saúde. Veja-se agora o drama do
Brasil, onde, no início da pandemia, as reservas já estão esgotadas.
E ao contrário do que afirma e
omite a apresentadora do programa, a questão das máscaras é complexa e não
simples e a invocação da experiência chinesa, mal assimilada e quase sempre
fora do contexto.
Transcrevemos agora a súmula
dessa experiência, relatada pelas autoridades de saúde deste país e chancelada
pela OMS.
A máscara,
na luta contra o COVID 19 e a experiência chinesa
Claim: Wearing more than one mask will help
prevent infection
Afirmação: Usar mais do que uma
máscara ajudará a prevenir a infeção
Wearing thicker masks or two disposable
surgical masks while trying to better prevent transmission of the novel
coronavirus does not help and may cause breathing difficulty.
Usar máscaras mais grossas ou
duas máscaras cirúrgicas descartáveis para melhor evitar a transmissão do novo
coronavírus não ajuda e pode causar dificuldades respiratórias.
A coronavirus is only 10 nanometers in diameter
and can only float in the air attached to other particles, like human droplets,
which are much bigger. A mask can help stop the coronavirus if it stops the
particles or droplets and a disposable surgical mask is good enough to do that.
O coronavírus tem apenas 10 nanómetros de
diâmetro e só pode flutuar no ar ligado a outras partículas, como gotículas
humanas, que são muito maiores. Uma máscara pode ajudar a parar o coronavírus
se parar as partículas ou gotículas e uma máscara cirúrgica descartável é boa o
suficiente para isso.
Cotton masks, thicker than surgical masks, have
bigger pores, which may allow the virus in. Even if it is stopped at the outer
surface, the virus may filter inside due to the absorbency of cotton after the
mask turns wet during use.
Máscaras de algodão, mais grossas
que máscaras cirúrgicas, têm poros maiores, o que pode permitir a entrada do
vírus. Mesmo que seja parado na superfície exterior, o vírus pode infiltrar-se
no interior devido à natureza absorvente do algodão após a máscara se molhar
durante a utilização.
https://covid-19.chinadaily.com.cn/a/202003/10/WS5e66d17aa31012821727da47_5.html
O uso de máscaras, na cultura de países asiáticos como a China, é um ato de proteção para com o outro e não o seu contrário.
O uso de máscaras, na cultura de países asiáticos como a China, é um ato de proteção para com o outro e não o seu contrário.
A apresentadora do programa escolheu a República Checa para estabelecer uma equação viciosa e ilusória entre o recurso geral à máscara (mais a dureza das medidas) e o baixo nível de danos do corona19.
Nem sequer se deu ao trabalho de
distinguir as suas caraterísticas (as máscaras N95 e as cirúrgicas são as que
possuem eficácia e, obviamente, não existiam no mercado à escala de uma
pandemia) e omitiu que as máscaras dos profissionais e cuidadores que estão em contato com os
doentes também devem proteger os olhos. A nossa pele é uma proteção natural
contra os vírus, eles entram pela boca, o nariz, os olhos… que tocamos com as
mãos.
E não escolheu a Áustria, onde o
governo anunciou (a 30 de março) que daria máscaras a pessoas em supermercados,
porque, segundo o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, haverá uma
"tempestade" no país nas próximas semanas, referindo ao número de casos da doença,
acrescentando que o objetivo a médio prazo é que as pessoas usem as máscaras em
público de maneira mais geral, ou seja, um contexto que não servia a narrativa que
previamente instrumentara.
Escamoteou a situação dos países do Leste europeu e e fugiu da Alemanha, porque o
caso alemão de redução relativa de danos, desmente a correlação milagrosa e
simplista que pretendia passar como dogma.
Recorrendo ao contraditório, cito
o Ministro da Saúde Italiano, insuspeito de radicalismo em favor de um Serviço Nacional
de Saúde forte, que concluiu desta pandemia o contrário do que a sua ala
política defendeu e aplicou, sobretudo nas regiões do Norte da Itália, as mais
flageladas pela pandemia: “A emergência mostrou que o Serviço Universal de
Saúde, criado em 1978, que implementou o artigo 32 da Constituição, é o bem
mais precioso e devemos investir nele."
( Roberto Speranza, discurso no
Parlamento e no Senado, Abril de 2020)
Anexo_ 19.10.2020
A subida da República Checa ao topo da pandemia na Europa, permite reavaliar melhor quanto vale a chamada investigação jornalística, na televisão pública_ RTP 1. O artigo anexo, publicado anteriormente no período crítico do estado de emergência, é útil para responder á questão formulada.
A carta então dirigida ao Provedor do espetador, adiante transcrita, teve como resposta a sua discordância:
Exmo Sr Provedor
Um programa sem contraditório e que reclama o estatuto de investigação, não pode assentar em omissões, falácias e mistificação dos factos, como procurarei demonstrar no texto anexo (Investigação ou mistificação?), e aqui, desde já exemplifico: O "case-study" escolhido como termo de comparação com Portugal, a República Checa, é por si só a demonstração do que chamei omissões, falácias e mistificação dos factos: a generalidade dos países do Leste da Europa apresentam até agora níveis baixos de contaminação e mortalidade, mas, dentro destes, a República Checa está em segundo lugar em número de infetados e falecimentos, considerando o todo de várias dezenas! E o mais que se verá.
A narrativa da apresentadora e os seus métodos, e o alinhamento das peças, , nada têm a ver com a heurística positiva e a heurística negativa de qualquer processo de investigação, que visa descobrir as preposições não falsificáveis e desconstruir as falsas proposições. O que se viu e ouviu foi uma tentativa de desautorizar a Autoridade Nacional de Saúde e a própria Organização Mundial de Saúde.
Noutras circunstâncias seria mais um caso de "jornalismo de opinião", mas, no período crítico da batalha, "o fogo amigo" pode fazer tanto dano como o fogo inimigo, sobretudo se é dirigido contra o quartel general!
Com os meus cumprimentos
António dos Santos Queirós
Adenda:
O leitor atento encontrará por si próprio os crescentes exemplos de "fogo amigo", protagonizados por dirigentes políticos e de associações profissionais, comentadores e jornalistas, sobre a pandemia e a economia, nessa feira de vaidades onde se revê a televisão.
O pensamento crítico. é outra coisa!
Sem comentários:
Enviar um comentário