22.2.22

Os farsantes e a memória perdida de Chernobyl


1919-1991

Perdida a memória histórica da independência alcançada com a fundação da URSS, a Ucrânia e a Rússia, perderam também a memória política de Chernobyl?

Na Ucrânia estamos perante dois problemas distintos, embora correlacionados: a situação da população russa que habita historicamente  as províncias de Lugansk e Donetsk e a península da Crimeia, e a expansão da NATO para Leste.

O outro lado das notícias sobre a Ucrânia

O desastre de Chernobyl foi um acidente nuclear que ocorreu em 26 de abril de 1986 com a explosão do reator nº 4 da Central Nuclear de Chernobyl, Ucrânia. O sarcófago protetor só seria concluído em dezembro de 1986. O material radioativo contaminou não apenas aquele país, mas também a Rússia e a Bielorrússia, atingiu o Norte e o Sul da Europa, provocou a curto e médio prazo milhares de mortos por cancro e outras doenças que passaram para as novas gerações… mas a tragédia teria sido incomensurável, para a Ucrânia, a Europa e o mundo, se os 530.000 “liquidadores”, provenientes de toda a URSS, não tivessem exposto as suas vidas e sacrificado a sua saúde para conter o desastre.

Pergunto-me e perguntou uma jornalista americana ao seu presidente, em direto pela CNN, para que invadiria a Rússia a Ucrânia? Ficou sem resposta.

Ucrânia, um país com a economia despedaçada, pela corrupção e fuga de capitais dos seus oligarcas, submetida às imposições do FMI, rica em matérias primas  e pão, de que o seu povo não beneficia! E a que preço a Rússia o faria?  A Rússia já mantém um nível de relações comerciais elevado com a Ucrânia, que nem a guerra civil interrompeu. Ela também empobrecida pela anterior queda do valor do seu imenso lençol de  petróleo, desvalorização manipulada pelos EUA e a Arábia Saudita.  E invadiria, contra  a memória viva da trágica invasão do Afeganistão, bem presente entre o seu povo!?

Do outro lado, estamos perante um sobressalto democrático e soberanista dos líderes da União Europeia _ UE, conservadores, liberais, social-democratas, em defesa de uma nação ameaçada? Ou face a uma gigantesca farsa montada pelos militaristas de todas a cores e os seus complexos industriais, arrebanhando consigo políticos sem coluna vertebral, jornalismos de propaganda, à cata também de revelações bombásticas, sinais irrefutáveis da “guerra iminente”…numa lavagem ao nosso pobre cérebro que faz gritar a uns que mata e a outros que esfola! Enquanto,  é patético ver o presidente ucraniano e o seu ministro da defesa, tentarem em vão chamar a turba a conter-se, que não é preciso ir tão longe...enquanto os ucranianos seguem a sua vida quotidiana,  estranhamente alheios à catástrofe anunciada ou apenas descrentes dos seus novos senhores e amigos, que acolhem no seu país o ucraniano  geólogo como jardineiro, a enfermeira como mulher a dias… e se surpreendem com o sentido do dever dos seus filhos estudantes, outrora educados pelo “regime socialista”!

Os que mentiram para levar a guerra ao Afeganistão, Koweit, Iraque, Síria, Líbia, para impor a austeridade e o Brexit... merecem ainda confiança?  Repetem que a invasão era para ontem, e vai ser amanhã ou depois, que vai engolir primeiro a Ucrânia e depois a Europa e o mundo...

Afirmam combater Putin  e promovem o primeiro oligarca que lhe disputa ao poder; mas escondem que nas últimas eleições para o parlamento russo, pela primeira vez na história recente, o partido de Putin não teve a maioria dos votos e manteve a hegemonia parlamentar graças à dispersão dessa oposição por 11 partidos, de todas as tendências políticas_ dos nacionalistas aos comunistas, sendo essa oposição liderada agora pelo novo Partido Comunista da Rússia, com 20% dos sufragios! Acossar a Rússia com a NATO, não é a maior ajuda que Putin pode ter para conservar o seu prestígio entre os povos do seu país?

Esse coro de belicistas anti Rússia, não vêm que a guerra económica das sanções e a via militar, estão a preparar nos EUA o regresso de Trump ao poder? Que esta estratégia de Biden, para recuperar para si a base social do trumpismo, é suicida?

E que este estado de uma nova guerra santa a ocidente contra a Rússia, está  a unir numa frente comum neofascistas com liberais e socialistas, em torno da guerra, do antissemitismo, do chauvinismo, da liquidação sumária dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da proliferação da pandemia nos países pobres, no retrocesso democrático das polónias, estónias, hungrias, ucrânias… que alastram como uma mancha de óleo, sob a pele das suas próprias democracias?

E mesmo que tudo termine, por ora, em guerra nenhuma? Quem dará a mão os ucranianos, sem investimentos, turistas, empregos, indústrias encerradas...E o que acontecerá aos farsantes? Nada.

Os aprendizes de feiticeiro

Mas chegou a vez do líder da Rússia lançar lenha sobre a fogueira, alterando, após reunião do seu Conselho de Segurança,  a política de respeito pela integridade da Ucrânia e abandonando os acordos de Minsk, que apontavam para uma solução federalista para a crise, com a concessão pelo governo central de um estatuto de autonomia política às regiões de Donetsk e Lugansk, habitadas historicamente por russos.

O risco de confronto militar aumenta.

Apelando para o anticomunismo, presente no discurso dos governantes dos dois campos. Putin, evoca a integração destas províncias na Ucrânia em 1918 e a Crimeia em 1954, factos históricos que são verdadeiros, classificando-os como uma perda para a Rússia e uma iniciativa tomada pela liderança do PC da URSS para reforçar a sovietização do estado ucraniano.

Aquelas regiões e a Crimeia são habitadas por mais de 8 milhões de russos e sempre o foram, ao longo da história moderna, juntamente com outras minorias. Integraram-se na Ucrânia por iniciativa do governo de Lenine em 1918 e depois de Khrushchov (que ali nasceu e foi líder), em 1954, para servirem de base ao  desenvolvimento industrial e facultar à Ucrânia soviética o acesso ao Mar Negro e de Azov.

Quando em 1991 a URSS se desagregou e a Ucrânia debatia o seu futuro, o parlamento ucraniano organizou um referendo sobre a independência de Donetsk e Lugansk, de que resultou um voto a favor de 83% da sua população. 

O presidente russo denuncia os EUA como mentores do golpe de estado que derrubou um governo democraticamente eleito em 2014,  acusado de ser pró-russo e que colocou no poder grupos anticomunistas (o partido Svodoba é assumidamente pró-nazi e antissemita) e ultranacionalistas que proibiram o uso da língua russa (tal como das minorias romena, grega e polaca) e atacaram e ocuparam metade das regiões do leste, que recusaram  aceitar  a legitimidade do governo golpista. A França e Alemanha, que tinham, em nome da União Europeia, alcançado  em 2014 o acordo para cessarem nas ruas de Kiev os conflitos de grupos armados contra o governo e resolver a situação com eleições antecipadas para Outubro, aceitaram o golpe e legitimaram as suas consequências. Estes são os factos da origem recente da crise, obliterados pela contrainformação que domina os noticiários.

Putin acusa a NATO e os EUA  de, a pretexto da crise na Ucrânia, terem instalado na região mísseis e sistemas militares que colocam todo o território russo sob ameaça direta, ampliando o cerco militar que acompanha a conquista dos mercados de leste, facto evidente e  não desmentido. O direito internacional garante a segurança nacional a todos os países, e é reconhecido também pela Carta das Nações Unidas:  basta lembrar a crise dos mísseis instalados em Cuba (1961) e a reação hostil americana, para o recordar.

Em suma: O abandono dos acordos de Minsk, primeiro pelos governantes da Ucrânia, que não deram um passo para a autonomia das Repúblicas de Leste e as cercaram e atacaram com forças militares e agora pelo governo da Rússia, que ao reconhecer a independência das Repúblicas, viola a integridade da Ucrânia, conduzirá provavelmente à retaliação da UE e dos EUA com sanções económicas, que atingirão de ricochete sobretudo a economia alemã_ estagnada antes da pandemia e depois toda a comunidade europeia.

O complexo militar industrial americano fará novos e grandes lucros, continuando a inundar a Europa com armas poderosas e letais e na Federação Russa crescerão as tendências nacionalistas e militaristas.

Os aprendizes de feiticeiro, que não são só russos e ucranianos, e foram até agora os líderes europeus seguidistas do governo de Biden, acordarão afinal para entender o que verdadeiramente está em jogo?

Na Ucrânia, estivemos sempre perante dois problemas distintos, embora correlacionados: a situação da população russa que habita historicamente  as províncias de Lugansk e Donetsk e a península da Crimeia, e a expansão da NATO para Leste.

Enfim: A diplomacia europeia quer lutar pela paz ou deixar-se arrebanhar para a guerra económica, que prepara o confronto militar?

É altura de passar a diplomacia para o Conselho de Segurança das Nações Unidas e ouvir a voz da China: salvaguardar a paz na Ucrânia, negociando entre as partes em conflito interno, uma solução política, que os acordos de Minsk propiciavam e a OSCE monitorizava. Conter o desenvolvimento dos pactos militares, regressar aos tratados europeus de segurança, aos tratados internacionais, envolvendo EUA e Rússia, para diminuir o potencial bélico e afastar das fronteiras nacionais todos os vetores de conflito.

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