18.2.20

ABRAÇAR A MORTE: Eutanásia, decisão política e compaixão (a morte de S. Pedro)


O argumento político principal contra a legitimidade da Assembleia da República para decidir sobre a despenalização da eutanásia e do suicídio assistido, está assente no facto de nem o PS nem o PSD terem colocado no seu programa eleitoral esta decisão política, apenas o fizeram o BE, o PAM e o Livre. Mas aqueles deputados vão ter liberdade de voto e assim decidir em consciência, e não por disciplina partidária. E essa legislação não resulta de nenhum direito ou moral natural, mas de um conjunto de decisões partidárias tomadas por sucessivas instâncias políticas, que não eram mais democráticas que a atual Assembleia.
Usando a prova contrária, a reduzida participação dos eleitores nos anteriores referendos da mesma natureza, onde as questões éticas e morais são tão relevantes como a dimensão política e ainda mais complexas, não constitui garantia de maior participação democrática.
E finalmente, ainda no plano político, as imposições orçamentais da União Europeia, a ascensão de grandes grupos empresariais que dominam os negócios da saúde, esmagam a concorrência privada, disputam o espaço das IPSS e canibalizam o SNS,   continuará a bloquear o crescimento da rede de cuidados paliativos, deixando entregues a si mesmo os casos mais graves e incuráveis. “Os casos perdidos”, serão mandados para casa, não por desumanidade, mas para que outros sobrevivam.
Quem são hoje aqueles que clamam por uma morte misericordiosa? Quem estudou este problema? Quem os conhece? Quem os procurou e ouviu? Quantos são? Ninguém sabe. Nenhuma instituição, quis saber!
Respondo sem outra autoridade que não a vida vivida e repartida entre o campo e a urbe: Os idosos que vivem e morrem doentes, pobres e solitários, em velhos andares isolados nas centros urbanos das nossas maiores cidades e nas cidades dormitório, os casais e viúvos com a família emigrada que esperam, doentes, a morte, nas nossa aldeias e campos queimados, num mundo rural em agonia. A eles ouço dizer, “tomara que Deus me leve!”
Os suicidas, de entre eles. Citando estudos científicos (Global Burden of Disease, comentados na nossa imprensa): A taxa de mortalidade por suicídio acima dos 75 anos é quatro vezes superior à média nacional. Em Portugal, o comportamento suicidário dos homens é três vezes superior ao das mulheres. A “solidão melancólica do mundo rural”. O Alentejo mantém-se como uma das regiões europeias com taxas mais altas de suicídio. Agora, em vez de ser aos 55 anos, é a partir dos 45 que começam a aparecer mais casos. Em números absolutos traduzem-se em 1 061 suicídios. A perda de estatuto social, associada à crise económica, a doença crónica ou a perda de rendimento, geram um risco acrescido de suicídio. Estas pessoas necessitam receber mais apoios sociais, além dos cuidados médicos.
Graças ao trabalho de crentes e não crentes, as IPSS, apoiadas pelo estado democrático, e as autarquias, acolhem nos seus centros socais uma grande massa de população desprotegida e envelhecida.
Mas há cada vez mais doenças crónicas e incuráveis, e já não apenas nos idosos. Os mais potentes opiáceos quebram a dor, mas os seus pacientes perdem a consciência e a autonomia.
Chegamos ao plano moral.
Face ao mistério e à proximidade da morte, a religião é um grande bálsamo. A psique e a consciência do crente encontra nela as forças incomensuráveis para se encomendar a Nossa Senhora da Boa Morte!
Mas para quem não é crente? Qual é o sentido da vida sofrida até ao último suspiro?  Quando o médico dita a sentença fatal: Um melanoma incurável e metastizado: alguns meses de sobrevida, com a agonia química. O mesmo, com um pouco mais de vida, para um cancro de pulmão, ou do pâncreas…uma esclerose múltipla que reduz a vida à condição vegetal, ou um pescoço quebrado…as doenças mentais degenerativas…
E é perante este ser humano que a moral e a lei dominantes se têm de confrontar:
É então que eu evoco a tradição cristã dos primeiros tempos e do suplício de S. Pedro: Condenado a morrer na cruz, pediu para ser crucificado de cabeça para baixo; por humildade, para com o seu criador? Ou por pura humanidade? A morte na cruz é uma longa asfixia, o sangue acumula-se e comprime os pulmões lentamente; com a cabeça projetada para os pés da cruz, a morte chega mais rápida e menos sofrida!
E recordo o momento mais humano de Cristo crucificado, quando, em agonia, ergue os olhos para o céu e clama: “Pai, porque me abandonaste?”
Não existe, na tradição do pensamento cristão, uma teologia única sobre o sofrimento e a morte. Mesmo com o bálsamo das Verónicas deste mundo, hoje sobre a forma de cuidados continuados,  e o conforto das lágrimas da mãe que vê partir o seu filho, a mais trágica das dores humanas, essa teologia reconhece que o sofrimento do ser humano pode ser física e moralmente insuportável e a aproximação da  morte, o seu alívio.
Interroguemos a Natureza Humana, colocando uma questão ontológica. Quem somos? Criados à imagem e semelhança do próprio Deus? Homem és pó e ao pó hás de voltar! Somos o resultado improvável da combinação de um número infinito de circunstâncias, determinadas pela ciência e pelo acaso? Uma nuvem de átomos. Somos poeira das estrelas. Somos a própria consciência da matéria primordial do universo e, nessa dimensão, o elemento mais elaborado da sua evolução desde o Big Bang?
Essa consciência, da morte inevitável, que se interroga até ao fim acerca do destino inexorável, é a face terrível da nossa própria liberdade.
O destino humano, pavor configurado no limite da existência de cada ser, mas também epopeia nesse singular contributo para que a Vida prossiga e, talvez ou não, venha a alcançar novos Mundos.
“Para onde vai a nossa consciência?” (Miguel Unamuno). Pensar e sentir a própria morte, dos seres que amámos, que nos fizeram nascer e aqueles a quem demos vida, reflexão primordial acerca da natureza humana, do carácter peculiar da espécie humana, gerada pela mesma matriz cósmica que fez nascer as estrelas e delas emergir a Terra, mas a única que sonhou ultrapassar, a nível da consciência individual, a lei de bronze da sobrevivência de todas os outras espécies: A morte como condição para a sobrevivência dos novos indivíduos sobre a Terra, derradeiro ato de amor para com os descendentes; os indivíduos têm de morrer para que a sua descendência específica prossiga e evolua_ princípio do Altruísmo.
Mas onde está o sentido da vida? Nesse devir da matéria para a consciência de si e do outro, criadora da nossa alteridade na relação com todos os seres e entes. Porque nasceu então a angústia da morte? Como a sentiriam os primeiros seres humanos? Porque emergiu na nossa consciência o desejo de imortalidade, de viver para sempre? E não nasceria logo ali a mesma angústia da eternidade? Talvez comece aqui o sentimento do sem sentido da vida. E a sua superação.
A vida, vivida em plenitude, dos caçadores felizes com a abundância da fauna primitiva, dos recolectores, saciados com bagas e frutos, a vida com sexo, ser amado. (Quando começámos a amar? E a sonhar?) A vida humana primitiva, difícil e heroica, dolorosa e curta, poderá ter feito nascer nos seres humanos o mesmo apelo oposto, à continuidade da vida e ao alívio da morte sem o sono povoado pelo pesadelo da dor.
A vida vivida, entre a angústia da imortalidade e da eternidade. Angústia resolvida na morte (?). Na morte física, que não é a morte das nossas moléculas e átomos.
“A ideia da Morte é a base da vida moral”, a consciência da finitude do eu pessoal faz nascer o imperativo metafísico de viver “para algo eterno”. (Antero de Quental)
Pode o condenado ao calvário da finitude, almejar ainda essa dimensão da vida? Pode, se for essa a sua crença. Mas porque não pode, “o outro”, abraçar a morte com dignidade?

1 comentário:

PAC disse...

Gostei muito.