20.4.15

A Obra de Manuel de Oliveira e os seus críticos




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Com bonomia e com o sincretismo (im-) possível

A propósito da “transgressão deformadora do cinema pela literatura” (LAC): O cinema partilha com a literatura categorias várias da estrutura da obra e dos seus valores estéticos, por exemplo, da composição e por aí poderemos chegar “à conclusão de que talvez todos os truques e processos abstratos de composição exprimam, por si próprios, uma interpretação ideológica do assunto apresentado.”(SE) Recordo-me, a propósito, da transcrição das aulas de um dos criadores do cinema moderno onde o estudo comparado das obras clássicas da sua Literatura nacional era um método recorrente.

Ao ler que MO fundiu  “um autismo de linguagem cinematográfica com o anacronismo das suas fontes literárias” (LAC), ocorre-me a frase de Eduardo Lourenço a propósito do novo romance português, que se anunciava com a “Sibila” e o “Rumor Branco”: “admirável anacronismo!”.

“Nem desinteresse pelo lá-fora cultural e literário, nem idolatria.  …a novidade é que desta vez a ressonância é de pura superfície, a imitação quase só reduzida a certos aspetos formais nalguns…Bessa Luís, Cardoso Pires, ou Almeida Faria”.

E definindo a sua especificidade literária: “admirável anacronismo, ”alimentando-se“…da nossa realidade mais visível…”, incomum no contexto das literaturas contemporâneas“…cujo grande tema é a desmontagem e a contestação ao nível mais radical, o da linguagem mesmo_ do que a literatura foi ou quis ser”.

Sentencia LAC que já “Aniki-Bobó se encontrava obsoleto, ao colocar-se ao lado do Neorrealismo, contra a voragem surrealista”.

Ignoremos o facto que a vaga surrealista se ergueu vinte anos antes do  Aniki-Bobó (1942) e como envelheciam rapidamente nessa altura as vanguardas estéticas,  e consideremos a classificação de “obsoleta” atribuída à estética  neorrealismo. Foi contra esta ideia etnocêntrica, de que existem culturas e estéticas maiores e menores, que se iniciou o combate e a construção da arte e da estética modernas, ainda no século XIX. Então, a Crítica da Forma, ao analisar a obra de arte no seu contexto estilístico e técnico, permitiu ultrapassar a parcialidade da tendência historicista, que reduzia a arte à reconstituição das personalidades artísticas dos autores e encomendadores, artificialmente isolados da vida e das influências socioculturais. E ajudou a combater os preconceitos contra as formas artísticas consideradas bárbaras ou menores, superando a hierarquização a-científica  entre períodos clássicos e de decadência. Este novo quadro teórico permitiria abrir caminho à revolução formal que marca o advento da arte e do cinema.

E é sob esta ideia, que não reconhece que as diversas correntes estéticas são igualmente ramos da mesma árvore que é a cultura da humanidade, sem qualquer hierarquia ou superioridade, que se construiu “ a colonização anglo-saxónica” (LAC), se vendeu a Europa a uma certa América ( há outra, multicultural), essa sim, monstruosa  “ máquina de intoxicação hollywoodesca”.

Enfim,   “a implícita exclusão totalitária de quaisquer outras (LAC)” fontes literárias de que é acusado MO é suportável pela consulta dessas fontes? Agustina Bessa-Luís, João Rodrigues de Freitas, Francisco Vaz de Guimarães,  Helder Prista, Madame de Laffaiette’s, Luís de Camões, José Régio,  Dostoievski, Nitzshe, Raul Brandão…e a Bíblia. “ Ecletismo, ou “admirável ecletismo”, talvez!? Mas, totalitarismo!?

Descreveu-nos ainda um MO todo poderoso,   “teve nas mãos um mundo inteiro” (LAC) e, podendo, “ coartou à cinematografia portuguesa a possibilidade de se tornar num motor vanguardista de uma hipotética revitalização da linguagem europeia”?(LAC)

Mas como, se autor de uma estética obsoleta, promovido como comparsa do “ cinema mais retórico do Mundo, o Francês”, não tinha talento  cinematográfico acima do estatuto menor de  “realizador típico”(LAC) ? E LAC acredita mesmo, que para enfrentar “o expansionismo neoliberal”, podemos esperar o advento de um outro David moderno capaz de derrubar o Golias hollywoodesco?

Uma estética de MO, “ estridente”, de “onanismo pictórico”, negando pelo discurso recitativo atores e enredos (LAC), ainda vá que não vá, mas wagneriano obsoleto? Qual é o herói wagneriano que veste a pele de D. Sebastião, herói (negativo) e único, do realizador?

Permita-se-me uma outra leitura do Aniki Bobó: Para o filme de Manuel de Oliveira não é o carácter instrumental do apetrecho que interessa,  os retratos dos meninos da Ribeira  estão lá, mas o que importa é que no seu aspeto pobre fitam-nos a dificuldade e privações da sua condição de filhos de trabalhadores, no cenário do rio estão os frutos dos socalcos doirados do Douro e da sua faina fluvial, sob os planos que seguem os seus passos insinua-se a fadiga dos dias que só a noite acalma, por estes pequenos e espontâneos atores passa a angústia da fome eminente e a silenciosa alegria de vencer a miséria, pertence à terra e está abrigado no mundo dos trabalhadores da Ribeira, eles são  o ente que reluz, olha-nos e torna-se presente, surge repousando em sim mesmo, com a sua solidez que conjuga todas as coisas segundo o modo e a extensão  ( MO, heideggeriano).

A Arte é Coisa e mais Outro, alegoria e símbolo. A interpretação das coisas pela matéria-forma vem da Idade Média (fundada na Fé) à Idade Moderna (o transcendental Kantiano). E continuo eu, já sem esperança de sincretismo, como um longo e “indigerível” plano de MO: A Crítica de Arte e da História da Arte, se contêm, em si, elementos de progresso, estes não excluem ou invalidam as mais antigas contribuições metodológicas, o que implica, neste campo, como em todos os domínios culturais, rejeitar o seguidismo em relação à vanguarda e à moda, e, de igual modo, recusar “o complexo de superioridade” que alguns especialistas reclamam para a sua área específica. Tal como o uso das calculadoras eletrónicas não invalidou o uso da tabuada e o disco informático não ocupou o lugar do suporte de papel que regista o pensamento humano. E, sem esquecer, que existe na Arte um território talvez irredutível ao conhecimento humano, demasiado complexo para que possa ser racionalmente definido e onde a Estética, que é do domínio da Filosofia, é a única bússola.

A essência da arte seria então a pôr-se-em-obra da verdade do ente, a arte deixa de ter a ver com a Beleza, que pertence à estética. Mas a verdade na Arte não é já cópia e imitação do real. A obra de arte às coisas dá um rosto e aos homens a visão deles mesmos. A obra abre um mundo e mantém-no aberto. A essência da verdade é desocultação. A obra move a terra para o aberto do mundo, como o pequeno herói do Aniki Bobó olha a montra inacessível e tão perto do seu desejo de posse da boneca, passaporte para o amor. E, então, ao abrir-se o mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, estreiteza e amplitude, distância e proximidade, pertencem ao ambiente velado onde se inserem e ganham dimensão e ligação entre si. E, nesse momento de dupla desocultação, é que a matéria se torna produtiva, se metamorfoseia em Arte, a cor ganha luz, o metal resplandece, a linguagem obtém o dizer. (!)

Disse-o, no artigo de divulgação escrito contra os argumentos da primazia do mercado e do elitismo da filmografia de MO, que a palavra, na linguagem fílmica de Manoel de Oliveira e os longos planos que a suportam, constituem um elemento distintivo da poética do realizador, resistindo à imagem volátil dos filmes de série e do estereótipo de Hollywood. E, “hélas”,  conquistando mercados internacionais!?

Disse também que todas as suas personagens (físicas) vestem a pele dum único ator, o povo português e, dele partindo, uma única personagem metafísica atravessa toda a filmografia de MO, a condição humana.

O filme é um não-lugar que cria um universo, o do cinema e este sela a experiência do realizador. A imagem é enganadora, um signo aberto sobre outro (Barthes), o ver o filme conduz às profundezas onde a experiência se sedimentou, lugar de todas as associações            ( Pomar).

É certo que este não é o tempo “escolástico” (LAC), mas também já não é o do “cartesianismo” (LAC). É-o sim da física relativista e quântica, que nos revela a natureza no seu estado para além do átomo, de movimento contínuo entre o infinitamente grande e pequeno, de indeterminação e relatividade de todos os elementos, em permanente transformação de energia e forma, de substância e estado, ordem aparente e caos absoluto e universal, acaso, acompanhando a mundialização da cultura e do consumo. 

A Estética mudou os seus princípios agarrando-se àquelas ideias de autonomia, ao pluralismo das leituras e sentimentos provocados pela arte, na arte e no artista, aceitando o papel ativo do observador como parceiro da revelação dos seus elementos constitutivos_ do mesmo modo que aquele papel se constituiu como um dos princípios fundamentais da física quântica e relativista.

Assim se compreende a sua (LAC) leitura da dimensão política da obra de MO: o percurso em obra do realizador é classificado na categoria colaboracionista de quem “ não incomodou antes (fascismo) e ainda incomodou menos depois (democracia liberal)”…porque António Ferro deixou passar o seu documentário “Douro, Faina Fluvial (1931)”? Mas não elogiava o fascismo o valor do trabalho, do mesmo modo que censurou ao Aniki-Bobó o ter desvelado a pobreza? …E quantos filmes de MO passaram na TV pública de todos os governos democráticos comparados com “os filmes cómicos” do anterior regime?

Depois, a acusação sobe ao topo moral: “…patrocinado pelas culturas colonizadoras… castrou a nossa criatividade” e “…instaurou um irremediável Mar Morto da nossa cinematografia…”culminando na “…nossa crítica maior, a do papel desempenhado por Manuel de Oliveira como agente contemporâneo de um neocolonialismo cultural”.

Mas não é esse o lugar ocupado pelo gigante Hollywood e pelos seus realizadores de serviço, mal comparados ao “homem de província, do Norte” (LAC)? E, portanto, não representa afinal, aquela crítica, uma “anacrónica impossibilidade dos contrários” (LAC) ?

Na perspectiva de Carl Argan, dois tipos de correntes artísticas caracterizam o século XX. Argan inclui, no primeiro grupo, o cubismo, as vanguardas históricas, a arquitetura racional, o desenho industrial, o stigl, os construtivistas e os novíssimos programadores multimédia, tendo como substrato cultural comum a intervenção da arte na mudança da sociedade.

No segundo grupo coloca a pintura metafísica, o dadaísmo, o surrealismo e as suas variações mais recentes, particularmente as que a cultura americana produziu, unidas pela recusa de uma qualquer relação com a realidade, de refúgio num mundo de indiferença e niilismo.

Clement Greenberg considerou a placa de pintura rasa e o monolitismo das esculturas-objectos, como uma autêntica revolução destinada a pôr fim ao ilusionismo visual e táctil, mas numa linha de continuidade pós-Moderna que remonta a Monet, a qual renova mas mantém separadas as divergentes artes, na procura da neutralidade, isto é, de autodefinição da Arte que se basta a si própria. Tal como Harold Steinberg viu nos novos artistas (Jonhs, Rauschenberg...), a rotura com toda a tradição renascentista, a anulação das diferenças entre pintura e escultura e, depois, a integração das artes, onde a neutralidade era afinal a novíssima modernidade.

Fico a pensar que se MO ser chamasse Steinberg e “anulasse” as diferenças entre composição literária e composição cinematográfica, ganharia o estatuto de pós-moderno. E, se a seguir filmasse o Velho do Restelo no jardim do seu condomínio, receberia o rótulo de uma obra de arte Combine...

E porquê, a talho de foice, flagelar Saramago? “Ao contrário de Saramago, do qual se distingue pela não negatividade de caráter e pela fidelidade aos lugares da identidade nacional” (Mo), Saramago, o infiel à Pátria ?, que deixou ao seu país tenças e cabedais, o da jangada de pedra que não ruma às Índias ou às Américas mas retorna sempre à terra mãe…e assenta-lhe  o golpe de misericórdia “Assim como a Academia Sueca, em risco de terminar o séc. XX sem nunca ter atribuído um Nobel à monumental e milenar literatura portuguesa, incorreu no erro de o desperdiçar num epifenómeno de visibilidade duvidosa” (MO); errou a Academia e errou o mundo inteiro, nem um crítico literário, um único professor de literatura, gritou que esse José vai nu de talento literário…!?

Avanço finalmente em grandes passadas para o futuro, “como um louco maior que a sua loucura” (MF) e ali me encontro pela primeira vez de acordo com o autor do texto “Manoel de Oliveira, um duplo e demasiado adiado adeus”.

Mas não sem que um pensamento perturbador me assalte: a luta pela emancipação da mulher e o reconhecimento do seu estatuto de plena dignidade humana, não é afinal a última fronteira dos nossos preconceitos, a condição da longevidade está ferida por uma moral pragmática que determina um novo imperativo categórico: envelhever sem sexo, sem trabalho, sem poder político…e sem realizar filmes.

Mas nesse futuro sombrio, que não nascerá da pena dos escritores, doravante inútil, mas do lavrar da crise financeira, da crise ambiental e da queda dos impérios modernos, armados para a guerra apocalíptica, química, biológica ou nuclear e onde não haverá lugar para nenhum museu ( O museu do Esquecimento é o anátema de LAC), outros entes, se a vida brotar de novo, porventura mais sábios, porque prudentes, guardarão piedosamente essas imagens estilhaçadas dos filmes de todos os Oliveiras, admiráveis fragmentos.

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