3.9.11

Discurso sobre a cegueira

“…se eu fosse português e, primeiro-ministro, e quisesse uma vez mais disfarçar a falta de um pensamento político próprio e de uma ideia de democracia para o mundo, diria lastimosamente que o drama da Líbia foi “uma espécie de 25 de Abril”, já que não passo de mais um pobre cego, um dos cegos do ensaio do nosso (grande) Saramago!”

Se eu fosse líbio sentiria sobretudo o horror da guerra, mais de 50 mil mortos e a destruição das infra-estruturas de saúde, educação, energia, água e saneamento, comunicações, etc…guerra civil de irmãos contra irmãos, o trauma insuportável dos meus filhos e dos meus netos, rios de sangue, feridas incuráveis na minha nação, sofrimento e horror, horror sem limites da guerra.

Se eu fosse árabe veria a intervenção dos aviões da NATO, mas também dos comandos transportados nos barcos furtivos e nos helicópteros Apache bombardeando e metralhando militares e civis sem nenhuma piedade pelas convenções internacionais, resoluções da ONU ou controle mediático, veria esta força brutal como uma ingerência nos problemas internos da Líbia, o eterno retorno da intervenção militar estrangeira agora sob a bandeira da cruzada moderna pela democracia liberal.

Se eu fosse africano reconheceria na guerra a continuação da violenta disputa entre as potências ocidentes para o controle e o reparto do petróleo africano, companhias francesas e inglesas a reclamar a partilha da quota que os italianos dominavam, e seguiria o seu rasto sangrento desde as guerras mundiais até às primeiras invasões da expansão europeia.

Se eu fosse cidadão líbio choraria a perda do maior índice de Desenvolvimento Humano da África, 0,847, na escala 0-1: Fecundidade: 3,5 filhos por mulher. Expectativa de vida M/F: 72/76 anos. Mortalidade infantil: 18 por mil nascimentos. Analfabetismo: 15,8%; se eu fosse estudante líbio temeria pelo futuro do ensino gratuito até à Universidade e por já não saber se voltaria a ter a oportunidade de me tornar num dos 10% dos alunos universitários que estudam na Europa, EUA, etc...com tudo pago; se eu pertencesse a um dos jovens casais temeria pela perda do subsídio de casamento que recebia, até 50.000 US$ para adquirir os bens de família; se eu fosse empresário líbio perguntar-me-ia se a nova coligação no poder, apoiada pelos líderes políticos conservadores da Europa aceitará que o Banco estatal continue a emprestar dinheiro sem juros; se eu fosse um árabe líbio (97% da nação), africano, turco ou berbere, cidadão das modernas cidades (78% da população), olharia com o coração dividido a história do regime, a esperança inicial nos oficiais nacionalistas e revolucionários de 1969 liderados por Kadafy e a sua corrupção e prepotência, o estéril deserto e o maior sistema de irrigação do mundo (Aquífero da Núbia), o sistema médico gratuito e o nosso petróleo derramado e em chamas, que tem a melhor qualidade do planeta, em volume superior a 45 bilhões de barris em reservas; recearia pelo futuro do Banco Central Líbio, independente do sistema financeiro mundial e das suas reservas em toneladas de ouro, base da estabilidade do dinar, a moeda nacional…

Se eu fosse uma mulher líbia temeria pelos direitos que conquistara com a minha emancipação.

Se eu fosse um jornalista com poder sobre o preconceito e a censura da minha redacção relataria tudo isto e perguntaria, perguntaria mil vezes, quem são os homens que disparam as armas perante as Câmaras? Quem são os grupos armados até aos dentes, que o olho único das câmaras capta sempre com a mesma imagem? Porque não há uma única mulher empunhando a arma no seu seio? Quem são esses chefes engravatados que passeiam o seu modo ocidental pelas chancelarias  e porque não há de novo uma única mulher sentada nas novas cadeiras do poder? Sobretudo, perguntaria às portas cerradas, às janelas fechadas, o que pensa o povo líbio desarmado?

Se eu fosse venezuelano apoiaria o meu presidente desde a primeira hora da guerra civil, propondo uma solução negociada e pacífica que conduzisse à implantação da liberdade política e à realização a curto prazo de eleições democráticas, que destronariam Kadafi e a sua corte, toda a sua corte, incluindo os trânsfugas, arrependidos e convertidos à democracia das bombas DU (urânio empobrecido), as bombas, balas e mísseis “sujos” que continuarão a matar com a sua radiação durante 3 biliões de anos (sim, são mesmo 3 biliões), não apenas as vítimas mas também os militares profissionais usados como carne para canhão, aquelas armas ultramodernas que os media e os canais Discoveries, ou mesmo a National Geography, apresentam como maravilhas da técnica, mas a quem Terry Jemison, do Department of Veterans Affairs, em depoimento à American Free Press acusou de serem responsáveis pela tragédia que se abateu sobre os veteranos da Guerra do Golfo, cujas incapacidades médicas desde 1991 chegam a 518.739, comparados com 7.035 feridos no Iraque no mesmo período de 14 anos (Leuren Moret) e estamos a falar de cancros devastadores, alterações e deformações genéticas.

Se eu fosse da AlQaeda, estaria agora a afiar os meus punhais sob a protecção dos petrodólares sauditas e o meu coração exultaria de ódio e vingança, pois à porta das escolas corânicas e das suas mesquitas, sentiria já a chegada de novos milhares e milhares de voluntários para o martírio, desenganados das proclamações ocidentais sobre o apoio aos direitos humanos e à liberdade e democracia das nações árabes, clamando também eles em defesa do povo do Bahrein, o pequeno estado com a maior base americana do médio oriente, invadido recentemente pelo exército dos cheques feudais sauditas, a revolta popular sufocada em sangue e em silêncio cúmplice ocidental.

Se eu fosse europeu ou ocidental e tivesse memória, recordar-me-ia de Timor, onde a resistência popular forçou a pressão política e o cerco internacional das democracias ao regime militar da Indonésia, impondo eleições democráticas e com elas o fim dos tiranos e dos governos de fantoches. E guardaria viva a mentira do Iraque, que justificou uma guerra sem fim nem democracia e o novo Vietname do Afeganistão, onde o sacrifício inútil dos jovens soldados das democracias americana e ocidentais são o maior libelo acusatório contra os juízes do Nobel de Estocolmo que tão cedo premiaram a vontade de paz do novo presidente americano, por quem o mundo teme, contra os conspiradores que abatem pelas costas os melhores dos líderes americanos, mas a quem o mundo receia por já não ter o controlo do seu Estado, nem do capital financeiro, nem da indústria da guerra e do petróleo, que agora é crise ambiental e nuclear.

Mas se eu fosse português e, primeiro-ministro, e quisesse uma vez mais disfarçar a falta de um pensamento político próprio e de uma ideia de democracia para o mundo, diria lastimosamente que o drama da Líbia foi “uma espécie de 25 de Abril”, já que não passo de mais um pobre cego, um dos cegos do ensaio do nosso (grande) Saramago!









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