23.9.14

O Regresso às Pátrias


"Esta é a ditosa pátria minha amada,
à qual se o Céu me dá que eu sem perigo
torne, com esta empresa já acabada,
acabe-se esta luz ali comigo”
                                       Luís de Camões, Canto III, Verso 21
“Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
 Nem é ditosa,  porque o não merece.
 Nem minha amada, porque é só madrasta.”
                                      Jorge de Sena,  (Araraquara, Brasil. 1961)
Porque não estão sozinhos os escoceses independentistas?

Após a morte de Mao, Deng Xiaoping, um comunista veterano da Longa Marcha, com experiência de direcção no partido e no governo e que tinha sido afastado dos lugares de liderança com a acusação de “economicismo”, elaborou com Chu-En-lai o programa das “Quatro Modernizações” (da agricultura, da indústria, das Forças Armadas e das actividades de ciência e tecnologia), aprovado no Terceiro Plenário do XI Comité Central (dezembro de 1978). A iniciativa  política dos novos líderes do PCCh foi decisiva para escapar ao risco de uma militarização do regime, como aconteceu na Coreia do Norte e para pôr fim à desordem provocada pela revolução cultural, que vitimou sobretudo os quadros e organizações do próprio partido comunista e desorganizou o estado.

Quando há 30 anos, o governo chinês iniciou o processo de reformas políticas e económicas, através do sistema das zonas económicas especiais (ZEEs), que o Secretário Geral do PCCh  Zheo Ziyang (XIII Congresso, 1987) ampliou a toda a zona costeira e que previa a integração da China no “grande círculo internacional”, o PCCh fundamentou essa nova orientação na tese de que só pode desenvolver-se actualmente um país que se integre na economia global.

A China elaborou o seu conceito de “socialismo de mercado”, atraindo na primeira fase a diáspora empresarial (os empresários patriotas) residentes nos países e regiões vizinhas (excepto o Japão, cujos governos liberais recusam a responsabilidade histórica pela bárbara invasão e ocupação – 1931-1945, data que de fato e numa perspetiva global não eurocêntrica, deu início à II guerra mundial), dirigindo-se depois para a América e a Europa. Abriu assim um novo fluxo de globalização, com epicentro na Ásia, que tornou possível, atualmente, a aliança multilateral  dos BRICS, sigla que designa a cooperação entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, para a criação de uma nova ordem económica, financeira e política mundial, multipolar e sem potências hegemónicas, da qual se aproximam agora muitos países da América e da África, particularmente Angola, nas suas parcerias com o Brasil e a China.

Porque não estão sozinhos os escoceses?

Quando hoje os catalães reclamam um estatuto de independência, perdida com o esmagamento da revolução de 1640, que se iniciou com  as revoltas dos camponeses e segadores e a oposição de aristocratas e burgueses e de todo o povo catalão à perda de autonomia do condado, ao conflito bélico entre as coroas de Espanha e França, à ocupação militar e aos pesados impostos de guerra, e conduziu à fundação da primeira República da Catalunha, é porque tomaram consciência que uma grande parte da riqueza produzida na sua nação vai diretamente para pagar os custos da globalização, isto é, as perdas dos bancos que jogaram na roleta de obscuros negócios de produtos derivados e bolhas imobiliários, e dos especuladores financeiros que manipulam os juros da dívida pública e privada.

Porque não estão sozinhos os escoceses?

No leste e sul da Ucrânia, o surgimento de movimentos e repúblicas separatistas, não resulta de uma mera conspiração russa para anexar território. Após o desmembramento da Jugoslávia, cuja memória já perdemos, a Ucrânia tornou-se o primeiro país europeu em que a disputa do seu mercado pelo bloco de interesses representado pela Comunidade Europeia aliada aos EUA, ao defrontar-se com a  oligarquia da Rússia, passou da disputa económica e financeira para o terreno militar. Partindo dos factos: Durante o ano de 2013, as manifestações populares contra o governo do presidente eleito Viktor Yanukovych, após se recusar a assinar um acordo de associação com a União Europeia, conduziram a confrontos com a polícia, mas,  rapidamente, milícias  armadas substituiram os movimentos populares nas disputas de rua. ( Note-se que a militarização das revoltas populares passou a ser uma estratégia das potências internacionais para controlar os movimentos populares revolucionários, depois da surpresa que foi o emergir das revoluções democráticas nos países árabes, a “Primavera Árabe”). A União Europeia, representada pela Alemanha, Polónia e a França, com a Rússia, mediou um acordo político entre o presidente e os partidos da oposição (04/02/14), que preconizava o fim dos confrontos e antecipava as novas eleições. As forças armadas, que até essa altura se tinham mantido afastadas do conflito, desencadearam então um golpe militar que levou o presidente Yanukovych a fugir para Moscovo para salvar a vida e os seus partidários foram perseguidos e ameaçados. O parlamento, já sem os deputados eleitos pelo partido de Yanukovych, procurou legitimar o novo poder destiuindo o presidente e nomeou um novo governo, que integrava partidos e movimentos ultranacionalistas e neofascistas. Uma das suas primeiras medidas foi revogar a lei que reconhecia o russo como uma língua regional oficial. Esta medida e a violação do acordo político através do golpe militar, passaram a ser sistematicamente escamoteados  pela comunicação social a ocidente. Pelo seu lado, a União Europeia e os EUA apoiaram de imediato o novo poder golpista, instalado em Kiev e legitimaram-no como único interlocutor político.

Contudo, vivem na Ucrânia mais de oito milhões de russos, predominando nas regiões do leste e do sul. A província da Crimeia fora parte da Rússia desde o século XVIII. Em 1954, no âmbito de uma reorganização interna da União Soviética, integrou-se na Ucrânia com um estatuto de autonomia. Face ao golpe de Kiev e às suas medidas chauvinistas, os  movimentos separatistas pró-russos iniciaram os seus protestos e a Crimeia proclamou rapidamente a independência e o seu regresso à Rússia. O governo ucraniano avançou então com forças militares e milícias armadas contra as outras autoproclamadas repúblicas independentes. A Rússia apoiou com equipamento militar e voluntários os movimentos separatistas e a confrontação violenta equilibrou-se, conduzindo a um cessar fogo temporário.

Pergunta-se: porque procuraram os EUA o confronto com a Rússia na Ucrânia, neste preciso momento?

A Comissão Europeia e os EUA estão a negociar há várias dezenas de anos o chamado Pacto Transatlântico, que consagra todas as políticas neo-liberais que prevaleceram na Europa sob a consigna da austeridade, sobretudo depois da crise financeira de 2007/2008 e cuja aplicação formal foi programada já para o próximo ano.  A liberalização total do mercado económico e financeiro, e a redução do papel do estado democrático e das funções sociais do estado, constitui a sua plataforma de negócios. No plano político (e militar?), este pacto agressivo, negociado sem mandato nem escrutíneo das nações e dos povos, é justificado como uma estratégia para enfrentar a ascensão da China e do bloco dos BRICS.

As forças dominantes nos EUA, que Obama nunca conseguiu controlar (ou nunca quis?), no plano da estratégia geopolítica, pretendem isolar a Rússia (e cercar a China), dificultar a consolidação da aliança dos BRICS, que anuncia já para 2015 a fundação do seu banco comum de investimento, utilizando a via da radicalização no confito ucarniano e desenvolvendo uma intensa campanha de propaganda nos média.

A União Europeia alinhou nesta aventura, abdicando de uma estratégia autónoma e da via negocial, aplicando depois sanções contra aquele país que agora se viram contra os interesses da economia agrária europeia e nacional ( o setor da hortofruticultura portuguesa, um dos mais próspero, perdeu este mercado). O partido de Putine, da nova oligarquia russa, viu neste incidente a oportunidade política para apelar ao sentimento nacional dos russos e recuperar a influência eleitoral perdida. De um lado e de outro, os militaristas ganham influência política e elaboram planos de confronto bélico.

Porque não estão sozinhos os escoceses?

O regresso às pátrias é afinal a outra face da moeda (preversa) da globalização. A globalização antidemocrática, antisocial e contra a paz, a sua causa. Independentemente do modo como cada nação e os seus cidadãos o percecionam e, sob o desafio e o risco, de ser liderado por partidos chauvinistas e neo-imperialistas.

Como cidadãos portugueses e comunitários, vivemos entre a ditosa pátria de Camões, que o deixou morrer à míngua e a pátria madrasta de Jorge de Sena, a sua amada, que o exilou.

Mas o que está verdadeiramente em causa, é de novo o reconhecimento internacional do direito das nações a disporem de si próprias e a construção de uma nova ordem internacional baseda nos princípios da reciprocidade,  benefício e interesse mútuos, da não ingerência, de respeito pela soberania nacional e da resolução pacífica dos conflitos. Trascendendo o direito, é uma questão do foro da ética política, por ser a única alternativa ao caos social, ao terrorismo e à guerra generalizada e total. Não temos de escolher entre as duas espadas, mas podemos levantar-nos contra elas e todos os povos do mundo nos apoiarão.

Porque não estão sozinhos os portugueses, mas sim com os povos pacíficos, as nações que prezam a sua autonomia e os governos que defendem a cooperação e a paz.

Agora escrevo, para  nunca mais voltarmos a ser a

“…terra triste

 à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,

 cheia de afáveis para os estrangeiros

 que deixam moedas e transportam pulgas,

 oh pulgas lusitanas, pela Europa;”

                                      Jorge de Sena,  (Araraquara, Brasil. 1961)

E cumprir de novo o voto de Camões

“,,,nunca poderá, com força ou manha,

a Fortuna inquieta pôr-lhe noda

que lha não tire o esforço e ousadia

dos belicosos peitos que em si cria."

                                       Luís de Camões, Canto III, Verso 17

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