“Será
preciso ver a morte em direto, por exaustão, de um dos futebolistas do mundial?”
No circo romano corriam
bigas e quadrigas de quatro cavalos (factiones
com quatro cores) e a frequência dos acidentes, as batalhas reconstituídas, os
combates de boxe, a caça a animais exóticos…faziam deste espetáculo um
divertimento sangrento. A Roma imperial e senhorial, usurária e escravizadora,
continha a revolta da maioria de cidadãos empobrecidos com pão distribuído
gratuitamente ou trigo vendido a baixo preço… e circo! No entanto, apenas as
pessoas inscritas nas listas frumentárias (de farinha) recebiam o trigo ou pagavam
um preço baixo por ele, e tinham acesso aos gigantescos recintos, e a nobreza
romana agarrava pelo pescoço a sua clientela eleitoral.
Mas também ali e nas
arenas dos anfiteatros, onde se massacraram gladiadores e cativos, os plebeus
protestavam a sua insatisfação perante o preço dos alimentos e a cobrança de
impostos.
Dois mil anos depois,
no “circo da fórmula 1”, a segurança dos pilotos e a sua morte trágica faziam
parte do espetáculo e da política oficial das marcas em concurso ( como em
Roma, as cores tradicionais dos carros no início da Fórmula 1 eram 4: o verde
para as equipes inglesas, o vermelho para as italianas, o azul para as
francesas e o branco alemão). E este espetáculo, adquiriu dimensão de massas: Após
a II Guerra, a prova inaugural em Silverstone (1950) contou com a assistência
de 100.000 pessoas, a presença do Rei George VI, da Rainha Elizabeth e da
princesa Margareth. Em 1955, a Mercedes abandonou temporariamente
as competições, após um dos seus bólides se projetar sobre a multidão matando mais
de 80 espectadores em Le Mans.
Nos anos de 1960, com novos carros com mais de 400 cavalos de potência, as mortes multiplicaram-se nas pistas. Jackie Stewart, no circuito belga de Spa-Francorchamps (1966), sofreu um grave acidente, quando a corrida prosseguiu apesar da medonha tempestade que se abatera sobra a pista. A BRM de Stewart caiu numa vala, e ele ficou preso no carro com o macaco encharcado de gasolina. Lutando contra o perigo mortal, os seus colegas tiveram de desparafusar o volante para o libertar. A partir daí, disse que não correria na equipa se não tivesse segurança no carro. Foi ele que idealizou o capacete integral e o fato antichamas. As companhias construtoras e proprietárias dos circuitos tentaram humilhá-lo, acusando-o de cobardia, proclamando que este era um desporto de elite, e o preço da vitória incluía o risco de graves lesões e de morte. Jackie Stewart viria ser campeão do mundo por 3 vezes.
Nos anos de 1960, com novos carros com mais de 400 cavalos de potência, as mortes multiplicaram-se nas pistas. Jackie Stewart, no circuito belga de Spa-Francorchamps (1966), sofreu um grave acidente, quando a corrida prosseguiu apesar da medonha tempestade que se abatera sobra a pista. A BRM de Stewart caiu numa vala, e ele ficou preso no carro com o macaco encharcado de gasolina. Lutando contra o perigo mortal, os seus colegas tiveram de desparafusar o volante para o libertar. A partir daí, disse que não correria na equipa se não tivesse segurança no carro. Foi ele que idealizou o capacete integral e o fato antichamas. As companhias construtoras e proprietárias dos circuitos tentaram humilhá-lo, acusando-o de cobardia, proclamando que este era um desporto de elite, e o preço da vitória incluía o risco de graves lesões e de morte. Jackie Stewart viria ser campeão do mundo por 3 vezes.
Em 1979, a FIA, a
federação internacional de automobilismo, fez da transmissão televisiva das
corridas um negócio milionário, alimentado pelo patrocínio das multinacionais
do tabaco.
Na década de 70, a morte
continuava a exigir o seu quinhão mesmo entre os melhores e um acidente na
pista de Monza, perto do fim do campeonato, tirou a vida a Jochen Rindt que o
liderava: tragicamente e dada a vantagem pontual que adquirira, ele tornou-se
no único campeão mundial a título póstumo. Nos anos 1970 morriam 2
pilotos por temporada, e ao chegar ao GP da Espanha (Barcelona), estes
verificaram que os guarda rails não tinham sido colocados de forma correta. Fittipaldi fez um ultimato aos organizadores: os pilotos
não treinariam "enquanto o guarda rail for peça decorativa". Os
organizadores ameaçaram confiscar carros e equipamentos nas boxes, pressionando
os donos das equipas para obrigar os seus pilotos a entrar em pista. Emerson,
Wilson Fittipaldi Júnior e Arturo Merzario tiveram a coragem de não ceder. Em
1976, o lendário Niki Lauda, que liderava o concurso, sofreu um terrível
acidente, que o deixou às portas da morte. Recuperado, e ao disputar a última
corrida da época, o grande prémio do Japão, debaixo de perigosa tempestade,
escolheu abandonar, desprezando o título mundial. A comunicação social acusou-o
de cobardia, mas um ano após, tornou-se bicampeão do mundo.
1994, é considerado o annus horribilis da Fórmula 1 por causa
dos inúmeros acidentes, que não pouparam a vida de uma nova estrela, o
tricampeão Ayrton Senna. Só então, os donos da FIA e do seu negócio, a
comunicação social que veiculava os seus interesses e propaganda, assumiram
formalmente o imperativo moral da segurança e do respeito pela vida dos pilotos
e espetadores.
A realização de jogos
de futebol do Mundial no Brasil à 1h da tarde, após épocas extremamente alongadas
e duras, com temperaturas e humidade sufocantes, põe em risco a integridade
física dos jogadores, como já acontecera antes no mundial do México, dos EUA e se anuncia
para o do Qatar. Mas o negócio da publicidade televisiva global assegura à FIFA
um lucro fabuloso. O protesto liderado por Maradona no mundial de 1986, não teve continuidade.
Como na arena romana,
os atletas da Argentina, num dos jogos de preparação, ergueram uma faixa de
protesto em defesa da soberania do seu país sobre as Malvinas. A FIFA abriu de
imediato um inquérito.
A Interpol abrira já
outro, sob a manipulação dos resultados e o negócio das apostas desportivas que
a Internet tornou incomensurável, dirigido a dirigentes, árbitros….
Nas ruas do Brasil, “o
povo do futebol” questiona o custo de tantos estádios e a sua construção
milionária no interior do país onde não há grandes clubes, e divide-se, entre o
circo e o pão da saúde e da educação.
Antes do início dos
jogos oficiais, das vitórias ou das derrotas, já no Brasil, a voz do
selecionador de um pequeno país, ergueu-se sem eco, dizendo à comunicação social
que aquele calendário era mau para a qualidade das partidas e perigoso para a saúde
dos atletas. Ninguém projetou essa voz, nem colegas de ofício, nem comentadores
desportivos, nem sequer os seus compatriotas: por isso escrevo aqui o seu nome,
Paulo Bento, que pode perder todas as disputas que aí vêm, mas já ganhou o
desafio da dignidade desportiva.
Os comentadores e
jornalistas exaltam o sacrifício e o sofrimento dos jogadores, sem questionaram
uma só vez a desumanidade do espetáculo e os efeitos das lesões múltiplas e
graves, na saúde e na longevidade dos atletas: Será preciso ver a morte em
direto, por exaustão, de um dos futebolistas do mundial?
(escrito em 19.06.2014 para o DN, que não o publicou)
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