10.9.12

Síria: A revolução truncada


A primeira vaga da revolução democrática nos países árabes apanhou de surpresa as potências mundiais.
A sua riqueza em petróleo, gaz natural, minerais e reservas financeiras, partilhada entre as oligarquias locais e as grandes empresas e consórcios financeiros, do ocidente e do leste, chocava com um grande movimento popular de revolta, que exigia liberdade política, pão e progresso social. Uma profunda inquietação invadiu então o mundo dos negócios e das finanças. 

Os seus porta-vozes políticos e da comunicação social começaram por lançar a suspeição acerca do fundamentalismo religioso que estaria a guiar a revolução e, quando se tornou irreversível a queda dos regimes autoritários da Tunísia e do Egito, declararam o seu apoio à transição para um modelo de democracia liberal.
Mas, em paralelo, procuraram suster e limitar a vaga revolucionária: a Arábia Saudita, o Koweit, o Qatar ou os Emiratos Árabes, regimes autocráticos, foram considerados intocáveis, tal como o Bahrein, o pequeno estado com a maior base americana do médio oriente, invadido pelo exército dos cheques feudais sauditas, a revolta popular sufocada em sangue e em silêncio cúmplice ocidental. A Rússia, que dispõe na Síria da única base naval na região, adotou a mesma política face ao seu regime.
Mas as primeiras manifestações de protesto do povo líbio e a violência da resposta do regime autoritário de Kadhafi permitiram ensaiar uma nova estratégia, a militarização da revolta popular: intervenção política, económica e mediática levada até ao extremo da guerra civil, seguida de escalada militar. Na Líbia, esta nova estratégia foi liderada no terreno pela Nato e pela França, com o objetivo de colocar no poder uma nova fação favorável aos seus interesses e renegociar a gestão das suas riquezas.
Todas as tentativas de mediação do conflito foram isoladas e boicotadas, como a que Hugo Chaves protagonizou, propondo uma solução negociada e pacífica que conduzisse à implantação da liberdade política e à realização a curto prazo de eleições democráticas, que destronariam Kadafi e a sua corte, toda a sua corte, incluindo os trânsfugas, arrependidos e convertidos à democracia dos vencedores.
O caminho pacífico das revoluções democráticas contra as ditaduras e os regimes autoritários, aberto pelas movimentos populares na revolução de Abril de  1974 em Portugal, e que influenciaria a queda dos regimes militares da Grécia ou do Brasil,  de Franco e Pinochet, alastrando por toda a América Latina e atingindo o Leste Europeu. Ou a estratégia de cerco à ditadura indonésia que oprimia Timor, onde a resistência popular prolongada gerou a pressão internacional das democracias sobre o regime militar da Indonésia, impondo eleições democráticas e com elas o fim dos tiranos e dos governos  fantoche.Foram truncados pela ação concertada das potências mundiais favorável ao conflito militar da guerra civil e à intervenção militar estrangeira.
Essa estratégia política custou ao povo líbio mais de 50 mil mortos e a destruição das infraestruturas de saúde, educação, energia, água e saneamento, comunicações, etc… o trauma insuportável da guerra civil de irmãos contra irmãos, rios de sangue, feridas incuráveis na sua nação, sofrimento e horror, horror sem limites da guerra.
A Líbia perdeu por muitos anos o maior índice de Desenvolvimento Humano da África, 0,847, na escala 0-1. O seu primeiro governo de facto, não eleito, impôs de imediato  uma constituição inspirada na lei islâmica.
Estão por divulgar os prejuízos causados pelo petróleo derramado e em chamas, que tem a melhor qualidade do planeta, em volume superior a 45 biliões de barris em reservas; e o destino dado ao Banco Central Líbio, independente do sistema financeiro mundial e das suas reservas em toneladas de ouro, base da estabilidade do dinar, a moeda nacional…
Enfim, um dos paradoxos desta estratégia política foi o reforço dos movimentos fundamentalistas islâmicos, que recrutam novos milhares e milhares de voluntários para o martírio, desenganados das proclamações ocidentais sobre o apoio aos direitos humanos e à liberdade e democracia das nações árabes. E o favorecimento da ascensão política dos partidos islamitas nas primeiras eleições realizadas na Tunísia e no Egito.

A militarização da revolta popular

O fracasso da ação mediadora das Nações Unidas e de Kofi Annan, insere-se na mesma estratégia de guerra civil e intervenção militar estrangeira, a princípio encoberta e depois direta. A posição da China, que apoiava este plano e se afirma contra a intromissão nos assuntos internos da nação Síria e em favor de uma solução política negociada, é confundida com a da Rússia, potência aliada do regime. O governo tirânico de Damasco é diabolizado e acusado de crimes de guerra contra os civis, mas como se não houvesse civis em ambos os campos e atrocidades comuns. Os dignatários do regime de Assad que desertam passam de imediato ao estatuto de defensores da democracia e dos direitos humanos. O cenário político e mediático segue o modelo da Líbia.
O Conselho Nacional Sírio_CNS, foi criado em outubro de 2011 por representantes da Irmandade Muçulmana, dos Comitês Locais de Coordenação que lideraram as manifestações, por liberais e também por partidos das minorias curdas e assíria, compostos principalmente por exilados políticos, contando com o apoio do governo da Turquia, onde se encontra instalado, da Arábia Saudita, do Qatar, dos Emiratos Árabes e das potências ocidentais. Ele não representa no entanto a totalidade da oposição síria, não integrando o Fórum Democrático, particularmente as personalidades e movimentos de esquerda.
A sua estratégia é o apelo à solução militar e à intervenção armada da Liga Árabe, do ocidente e dos EUA.
O porta-voz do Conselho Nacional Sírio (CNS), George Sabra, deu uma conferência de imprensa em Istambul ( Março de 2012) afirmando: “Pedimos uma intervenção militar dos países árabes e ocidentais para proteger os civis”. Sabra anunciou que foi estabelecido um gabinete de coordenação para encaminhar armas para o Exército Livre. Disse que isso será feito com o apoio de governos estrangeiros. O CNS rejeitou o plano de paz das Nações Unidas, baseado no cessar-fogo e nas negociações políticas para uma solução pacífica e política do conflito.
Mas as dissidências internas do CNS têm sido constantes. E a violência crescente da guerra civil ameaça dividir a nação Síria pela questão religiosa, já que as lideranças tradicionais do regime sírio recrutam os seus quadros nas minorias alauita e cristã, em detrimento da maioria sunita.
Este quadro político divide profundamente o mundo árabe, sucedendo-se as conferências internacionais promovidas por diferentes protagonistas, algumas das quais não têm qualquer eco na imprensa ocidental:
O encontro dos "Amigos do povo da Síria", realizado em Abril, na Turquia, juntou representantes diplomáticos de cerca de 70 países ocidentais e árabes, onde se proclamou o CNS como o legítimo representante da Síria. O Conselho Nacional sírio garantiu nessa altura os salários para os rebeldes que combatem o regime do Presidente Bashar Al-Assad. Os militares desertores também serão pagos com milhões de dólares doados por vários países do Golfo Pérsico. Ausências relevantes foram as da Rússia, China e Irão, que em Teerão realizaram uma outra Conferência internacional
A Conferência nacionalista Árabe, reunida em Junho na Tunísia, envolvendo os partidos nacionalistas e laicos nasseristas ou “baasitas”, e outros de esquerda, defendeu a solução política não militar.
A guerra civil na Síria causou ao seu povo dezenas de milhares de mortos e feridos e centenas de milhares de refugiados, destruindo a sua economia e a vida social. Ameaça agora desencadear um conflito à escala regional, de proporções incalculáveis.
A instabilidade política nesta região produtora de petróleo, gaz e minerais, ameaça agravar a crise económica internacional através de uma escalada de preços, mas promete aos detentores dessas matérias-primas e ao capital financeiro que nelas investe, fabulosas mais-valias de sangue!

1 comentário:

Mário Tomé disse...

Na Síria como na Líbia deu-se aquilo a que chamo "Intercepção armada". As potências da NATO interceptam a revolta popular lançando no terreno grupos armados que transformam uma revolução social numa guerra civil catastrófica que elas facilmente controlam desde o primeiro momento, nomeadamente através do fornecimento de armas e de financiamento dos movimentos e dos mercenários sempre disponíveis para este tipo de "luta pela liberdade". No caso da Síria o Qatar e a Arábia Saudita são os agentes na região.