A primeira vaga da revolução
democrática nos países árabes apanhou de surpresa as potências mundiais.
A sua riqueza em petróleo, gaz
natural, minerais e reservas financeiras, partilhada entre as oligarquias
locais e as grandes empresas e consórcios financeiros, do ocidente e do leste,
chocava com um grande movimento popular de revolta, que exigia liberdade
política, pão e progresso social. Uma profunda inquietação invadiu então o
mundo dos negócios e das finanças.
Os seus porta-vozes políticos e da comunicação
social começaram por lançar a suspeição acerca do fundamentalismo religioso que
estaria a guiar a revolução e, quando se tornou irreversível a queda dos
regimes autoritários da Tunísia e do Egito, declararam o seu apoio à transição
para um modelo de democracia liberal.
Mas, em paralelo, procuraram
suster e limitar a vaga revolucionária: a Arábia Saudita, o Koweit, o Qatar ou os
Emiratos Árabes, regimes autocráticos, foram considerados intocáveis, tal como
o Bahrein, o pequeno estado com a maior base americana do médio oriente,
invadido pelo exército dos cheques feudais sauditas, a revolta popular sufocada
em sangue e em silêncio cúmplice ocidental. A Rússia, que dispõe na Síria da
única base naval na região, adotou a mesma política face ao seu regime.
Mas as primeiras manifestações de
protesto do povo líbio e a violência da resposta do regime autoritário de Kadhafi
permitiram ensaiar uma nova estratégia, a militarização da revolta popular: intervenção
política, económica e mediática levada até ao extremo da guerra civil, seguida
de escalada militar. Na Líbia, esta nova estratégia foi liderada no terreno pela
Nato e pela França, com o objetivo de colocar no poder uma nova fação favorável
aos seus interesses e renegociar a gestão das suas riquezas.
Todas as tentativas de mediação
do conflito foram isoladas e boicotadas, como a que Hugo Chaves protagonizou,
propondo uma solução negociada e pacífica que conduzisse à implantação da
liberdade política e à realização a curto prazo de eleições democráticas, que
destronariam Kadafi e a sua corte, toda a sua corte, incluindo os trânsfugas,
arrependidos e convertidos à democracia dos vencedores.
O caminho pacífico das revoluções
democráticas contra as ditaduras e os regimes autoritários, aberto pelas
movimentos populares na revolução de Abril de
1974 em Portugal, e que influenciaria a queda dos regimes militares da
Grécia ou do Brasil, de Franco e
Pinochet, alastrando por toda a América Latina e atingindo o Leste Europeu. Ou
a estratégia de cerco à ditadura indonésia que oprimia Timor, onde a
resistência popular prolongada gerou a pressão internacional das democracias
sobre o regime militar da Indonésia, impondo eleições democráticas e com elas o
fim dos tiranos e dos governos fantoche.Foram truncados pela ação concertada
das potências mundiais favorável ao conflito militar da guerra civil e à
intervenção militar estrangeira.
Essa estratégia política custou
ao povo líbio mais de 50 mil mortos e a destruição das infraestruturas de
saúde, educação, energia, água e saneamento, comunicações, etc… o trauma
insuportável da guerra civil de irmãos contra irmãos, rios de sangue, feridas
incuráveis na sua nação, sofrimento e horror, horror sem limites da guerra.
A Líbia perdeu por muitos anos o maior
índice de Desenvolvimento Humano da África, 0,847, na escala 0-1. O seu
primeiro governo de facto, não eleito, impôs de imediato uma constituição inspirada na lei islâmica.
Estão por divulgar os prejuízos
causados pelo petróleo derramado e em chamas, que tem a melhor qualidade do planeta,
em volume superior a 45 biliões de barris em reservas; e o destino dado ao
Banco Central Líbio, independente do sistema financeiro mundial e das suas
reservas em toneladas de ouro, base da estabilidade do dinar, a moeda nacional…
Enfim, um dos paradoxos desta
estratégia política foi o reforço dos movimentos fundamentalistas islâmicos, que
recrutam novos milhares e milhares de voluntários para o martírio, desenganados
das proclamações ocidentais sobre o apoio aos direitos humanos e à liberdade e
democracia das nações árabes. E o favorecimento da ascensão política dos
partidos islamitas nas primeiras eleições realizadas na Tunísia e no Egito.
A militarização da revolta popular
O fracasso da ação mediadora das
Nações Unidas e de Kofi Annan, insere-se na mesma estratégia de guerra civil e
intervenção militar estrangeira, a princípio encoberta e depois direta. A
posição da China, que apoiava este plano e se afirma contra a intromissão nos assuntos
internos da nação Síria e em favor de uma solução política negociada, é
confundida com a da Rússia, potência aliada do regime. O governo tirânico de
Damasco é diabolizado e acusado de crimes de guerra contra os civis, mas como
se não houvesse civis em ambos os campos e atrocidades comuns. Os dignatários
do regime de Assad que desertam passam de imediato ao estatuto de defensores da
democracia e dos direitos humanos. O cenário político e mediático segue o
modelo da Líbia.
O Conselho
Nacional Sírio_CNS, foi criado em outubro de 2011 por representantes da
Irmandade Muçulmana, dos Comitês Locais de Coordenação que lideraram as
manifestações, por liberais e também por partidos das minorias curdas e assíria,
compostos principalmente por exilados políticos, contando com o apoio do
governo da Turquia, onde se encontra instalado, da Arábia Saudita, do Qatar,
dos Emiratos Árabes e das potências ocidentais. Ele não representa no entanto a
totalidade da oposição síria, não integrando o Fórum Democrático, particularmente
as personalidades e movimentos de esquerda.
A sua estratégia
é o apelo à solução militar e à intervenção armada da Liga Árabe, do ocidente e
dos EUA.
O porta-voz do
Conselho Nacional Sírio (CNS), George Sabra, deu uma conferência de imprensa em
Istambul ( Março de 2012) afirmando: “Pedimos uma intervenção militar dos
países árabes e ocidentais para proteger os civis”. Sabra anunciou que foi estabelecido
um gabinete de coordenação para encaminhar armas para o Exército Livre. Disse
que isso será feito com o apoio de governos estrangeiros. O CNS rejeitou o
plano de paz das Nações Unidas, baseado no cessar-fogo e nas negociações
políticas para uma solução pacífica e política do conflito.
Mas as
dissidências internas do CNS têm sido constantes. E
a violência crescente da guerra civil ameaça dividir a nação Síria pela questão
religiosa, já que as lideranças tradicionais do regime sírio recrutam os seus
quadros nas minorias alauita e cristã, em detrimento da maioria sunita.
Este quadro
político divide profundamente o mundo árabe, sucedendo-se as conferências
internacionais promovidas por diferentes protagonistas, algumas das quais não
têm qualquer eco na imprensa ocidental:
O encontro dos "Amigos do
povo da Síria", realizado em Abril, na Turquia, juntou representantes
diplomáticos de cerca de 70 países ocidentais e árabes, onde se proclamou o CNS
como o legítimo representante da Síria. O
Conselho Nacional sírio garantiu nessa altura os salários para os rebeldes que
combatem o regime do Presidente Bashar Al-Assad. Os militares desertores
também serão pagos com milhões de dólares doados por vários países do Golfo
Pérsico. Ausências relevantes foram as da Rússia, China e Irão, que em Teerão
realizaram uma outra Conferência internacional
A Conferência nacionalista Árabe,
reunida em Junho na Tunísia, envolvendo os partidos nacionalistas e laicos
nasseristas ou “baasitas”, e outros de esquerda, defendeu a solução política
não militar.
A guerra civil na Síria causou ao
seu povo dezenas de milhares de mortos e feridos e centenas de milhares de
refugiados, destruindo a sua economia e a vida social. Ameaça agora desencadear
um conflito à escala regional, de proporções incalculáveis.
A instabilidade política nesta
região produtora de petróleo, gaz e minerais, ameaça agravar a crise económica
internacional através de uma escalada de preços, mas promete aos detentores
dessas matérias-primas e ao capital financeiro que nelas investe, fabulosas
mais-valias de sangue!
1 comentário:
Na Síria como na Líbia deu-se aquilo a que chamo "Intercepção armada". As potências da NATO interceptam a revolta popular lançando no terreno grupos armados que transformam uma revolução social numa guerra civil catastrófica que elas facilmente controlam desde o primeiro momento, nomeadamente através do fornecimento de armas e de financiamento dos movimentos e dos mercenários sempre disponíveis para este tipo de "luta pela liberdade". No caso da Síria o Qatar e a Arábia Saudita são os agentes na região.
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