23.1.15

Porque se mata em nome de Deus?


“Em forma de oração:

 Nesta hora, que é de luto e de raiva, rogo a mim mesmo que nunca me esqueça que as primeiras vítimas dos terroristas árabes são os seus próprios povos e que a guerra contra o terrorismo, como todas as guerras, exige sempre uma solução política!”

A intervenção político-militar foi a solução adotada pelas potências ocidentais, no Iraque e no Afeganistão…como já o fora no passado. Tal como a militarização das manifestações populares da Primavera Árabe, armando e financiando alguns grupos da oposição, como é o caso da Síria e foi o da Líbia. 

Em paralelo, procuraram suster e limitar a vaga das revoluções democráticas: a Arábia Saudita, o Koweit, o Qatar ou os Emiratos Árabes, regimes autocráticos, foram considerados intocáveis, tal como o Bahrein, o pequeno estado com a maior base americana do médio oriente, invadido pelo exército dos cheques feudais sauditas, a revolta popular sufocada em sangue e em silêncio cúmplice ocidental. A Rússia, que dispõe na Síria da única base naval na região, adotou a mesma política face ao seu regime.

O caso Líbio, hoje ausente da comunicação social, merece uma especial reflexão: As grandes manifestações de protesto do povo líbio e a violência da resposta do regime autoritário de Kadhafi permitiram ensaiar uma nova estratégia, a militarização da revolta popular: intervenção política, económica e mediática levada até ao extremo da guerra civil, seguida de escalada militar. Na Líbia, esta nova estratégia foi liderada no terreno pela Nato e pela França, com o objetivo de colocar no poder uma nova fação favorável aos seus interesses e renegociar a gestão das suas riquezas. Todas as tentativas de mediação do conflito foram isoladas e boicotadas, como a que Hugo Chaves protagonizou, propondo uma solução negociada e pacífica que conduzisse à implantação da liberdade política e à realização a curto prazo de eleições democráticas, que destronariam Kadafi e a sua corte, toda a sua corte, incluindo os trânsfugas, arrependidos e convertidos à democracia dos vencedores. Kadafi foi executado sumariamente. O estado desagregou-se. Os serviços sociais, os mais avançados da África, desapareceram. O seu primeiro governo de facto, não eleito, impôs de imediato uma constituição inspirada na lei islâmica. Mas as milícias armadas continuam a disputar o poder. O terrorismo no Mali e na Nigéria recrudesceu e armou-se.

O fracasso da ação mediadora das Nações Unidas e de Kofi Annan na Síria, insere-se na mesma estratégia de guerra civil e intervenção militar estrangeira, a princípio encoberta e depois direta. A posição da China, que apoiava esse plano e se afirma contra a intromissão nos assuntos internos da nação Síria e em favor de uma solução política negociada, é confundida com a da Rússia, potência aliada do regime. O governo tirânico de Damasco é diabolizado e acusado de crimes de guerra contra os civis, mas como se não houvesse civis em ambos os campos e atrocidades comuns. Os dignatários do regime de Assad que desertam passam de imediato ao estatuto de defensores da democracia e dos direitos humanos. O cenário político e mediático segue o modelo da Líbia. O Conselho Nacional Sírio_CNS, foi criado em outubro de 2011 por representantes da Irmandade Muçulmana, dos Comitês Locais de Coordenação que lideraram as manifestações, por liberais e também por partidos das minorias curdas e assíria, compostos principalmente por exilados políticos, contando com o apoio do governo da Turquia, onde se encontra instalado, da Arábia Saudita, do Qatar, dos Emiratos Árabes e das potências ocidentais. Ele não representa no entanto a totalidade da oposição síria, não integrando o Fórum Democrático, particularmente as personalidades e movimentos de esquerda. A sua estratégia é o apelo à solução militar e à intervenção armada da Liga Árabe, do Ocidente e dos EUA.

O porta-voz do Conselho Nacional Sírio (CNS), George Sabra, deu uma conferência de imprensa em Istambul ( Março de 2012) afirmando: “Pedimos uma intervenção militar dos países árabes e ocidentais para proteger os civis”. Sabra anunciou que foi estabelecido um gabinete de coordenação para encaminhar armas para o Exército Livre. Disse que isso será feito com o apoio de governos estrangeiros. O CNS rejeitou o plano de paz das Nações Unidas, baseado no cessar-fogo e nas negociações políticas para uma solução pacífica e política do conflito.

O encontro dos "Amigos do povo da Síria", realizado em Abril de 2012, na Turquia, juntou representantes diplomáticos de cerca de 70 países ocidentais e árabes, onde se proclamou o CNS como o legítimo representante da Síria. O Conselho Nacional sírio garantiu nessa altura os salários para os rebeldes que combatem o regime do Presidente Bashar Al-Assad. Os militares desertores também serão pagos com milhões de dólares doados por vários países do Golfo Pérsico. As milícias do ISIS ( “Estado islâmico”), inicialmente criadas no Iraque ocupado, estenderam-se então à Síria.

Ausências relevantes foram as da Rússia, China e Irão, que em Teerão realizaram uma outra Conferência internacional. Em paralelo, a Conferência nacionalista Árabe, reunida em Junho na Tunísia, envolvendo os partidos nacionalistas e laicos nasseristas ou “baasitas”, e outros de esquerda, defendeu a solução política não militar.

Mas aquela via da “solução militar”, segue uma longa e sangrenta tradição, que apenas no caso da Palestina tem vindo a evoluir para uma proposta de solução política, a coexistência pacífica do Estado de Israel e do Estado palestiniano.

 Na Argélia, a Frente Islâmica, organização politicamente moderada e que ganhou apoio do povo argelino fruto de uma longa tradição assistencialista, quando venceu as eleições sofreu de imediato um golpe de estado, apoiado pelo Ocidente, seguido de uma sangrenta guerra civil (1991-2002), que, se conservou o regime, semeou o fundamentalismo e o terrorismo no mundo árabe, desacreditando a via democrática. O atual governo militar egípcio resultou também de um golpe de estado apoiado pelas democracias ocidentais contra o partido vencedor, representante político da Irmandade Muçulmana.

Neste ponto valerá recordar a resistência sectária das potências europeias à integração da Turquia na Europa comunitária (3% do seu território é europeu e o império bizantino integrou a cultura clássica europeia e a cultura oriental), constituiu uma oportunidade perdida para desenvolver a democracia nos países de influência islâmica e combater vitoriosamente o fundamentalismo. (A opinião pública turca, antes favorável à integração, é agora minoritária).

Voltemos ao massacre dos jornalistas franceses do Charlie. O líder do Hezbollah condenou os grupos extremistas que praticam atos terroristas em nome do Islão, considerando que essas são as piores ofensas que já foram feitas ao profeta Maomé. Uma das vítimas do ataque terrorista em Paris foi um polícia muçulmano, Ahmed Merabet  executado a sangue frio pelos tiros dos irmãos Kouachi.  

O Hamas "condena as agressões contra o jornal Charlie Hebdo e insiste que a diferença de opiniões e de pensamento não podem justificar o assassinato", refere em comunicado o grupo palestiniano, citado pela France Press (AFP). O Hamas, apoiado pelo regime Sírio e o Hezbollah pelo Irão, fazem parte da lista negra das “organizações terroristas”, segundo o governo dos EUA.
O Irão condenou o atentado contra a sede da revista francesa satírica "Charlie Hebdo", e qualificou de "alheio à educação do islão" qualquer ato terrorista contra o povo. Segundo o seu porta voz oficial, "as políticas errôneas e as condutas dúplices frente à violência e ao extremismo" são as causas do crescimento destes comportamentos.

Jean-Marie Le Pen, fundador do partido de extrema-direita francês Frente Nacional (FN), afirmou "não ser Charlie".

Marine Le Pen, a atual líder desse partido, defendeu a reintrodução da pena de morte em França, o fecho das fronteiras do país, a retirada da nacionalidade francesa a todas as pessoas que sejam suspeitas de terrorismo.

Mediante as acusações de exclusão feitas por ela, tanto o presidente François Holland como o primeiro-ministro Manuel Valls  esclareceram que todos os franceses defensores da república, da liberdade, da democracia estavam  convidados a participar na marcha de amanhã e deviam fazê-lo.

Mas o partido de Marine Le Pen organizou a sua própria manifestação em Beaucaire, Gard, a cerca de 700 km de distância da capital francesa e da marcha pela unidade.

O Papa Francisco, que condenou o atentado, comentou esta quinta-feira, durante a sua visita às Filipinas, a publicação de novas caricaturas de Maomé pelo Charlie Hebdo: “É verdade que não se deve reagir com violência, mas mesmo se formos bons amigos, se insultar a minha mãe, tem de esperar um golpe – é natural”, disse.

Qual é o significado político e moral desta afirmação, no contexto do atentado terrorista contra o jornal satírico francês? As caricaturas do Charlie Hebdo são equiparáveis aos hipotéticos insultos à mãe do Papa e tornam inevitável o golpe violento de resposta?

E continuou o líder da Igreja católica: “Não se pode gozar com a religião dos outros. Não se pode insultar a sua fé ou rir dela”, afirmou, sublinhando que “na liberdade de expressão existem limites”, apesar de considerar que esta faz parte dos “direitos fundamentais do ser humano”. E de novo me questiono: se as caricaturas do Charlie Hebdo insultam a fé e troçam dela, devemos traçar-lhe um limite ou devemos denunciar esse carater insultuoso e confiar no juízo crítico dos seus eventuais leitores?

O mais novo dos irmãos Kouachi disse à BFM-TV por telefone, de acordo com uma gravação transmitida pelo canal de TV depois do fim do cerco, que foi enviado pela Al Qaeda do Iêmen e financiado pelo seu chefe Al Awlaki, morto entretanto em setembro de 2011 no ataque de um drone ( veículo aéreo não tripulado) dos EUA. No seu discurso de despedida procurou justificar o assassinato dos jornalistas por razões político-religiosas, não apenas para vingar os insultos ao profeta mas como retaliação face à intervenção militar das potências ocidentais no Iraque, no Afeganistão e na Síria, e a morte de milhares de crianças e mulheres na Palestina vítimas da guerra de Israel contra o Hamas. Então, simbolicamente, os dois terroristas deixaram sair em segurança o dono da tipografia que estava como refém e enfrentaram a polícia até à morte.

Amedy Coulibaly, o sequestrador do supermercado judaico em Paris e que já antes tinha abatido uma mulher polícia, telefonou igualmente à BFM-TV, dizendo que queria vingar os palestinianos atacados por Israel e as nações árabes atingidas pela intervenção militar ocidental. Assassinou quatro dos reféns judeus, antes de ser abatido. Coulibaly disse ser membro do ISIS ( Estado Islâmico) e afirmou que havia  desencadeado os seus crimes em apoio dos ataques dos irmãos Kouachi.

Os três terroristas são cidadãos franceses, de famílias árabes emigradas. Tal como outros cinco mil jihadistas, puderam circular livremente entre a Europa, a Síria ( e o Iraque) desde o início da guerra civil. A propaganda e o recrutamento de radicais para combater como opositores do regime Sírio proliferou na Europa, e não apenas na França e na Bélgica, com os meios de comunicação social a tomar partido contra o atual governo de Assad e do partido Baas e, perante a passividade dos governos da União Europeia, num contexto de crise socioeconómica que deixou a juventude de origem árabe em França com 40% de desempregados e, portanto, em risco de marginalidade. Até que surgiu a barbárie do  ISIS ( vulgo, “estado islâmico”) e o fracasso da política dos EUA e da EU para o médio-oriente se tornou tragicamente visível.

Aqui, abrimos um parênteses para perguntar: quem compra o petróleo que o ISIS retira dos poços que conquistou no Iraque e na Síria, e cuja venda no mercado turco financia a sua guerra terrorista?

A democracia não se exporta e impõe com exércitos de ocupação, como o demonstra o Iraque e no Afeganistão.

O islamismo não é uma religião monolítica e no seu desenvolvimento histórico evoluiu para diferentes interpretações da doutrina e da legitimidade das autoridades religiosas sucessoras do profeta. No século XX surgiram os primeiros estados modernos de maioria muçulmana, separando estado e religião; mas a intervenção das potências ocidentais fez cair os seus governos nacionalistas e explorou as divergências religiosas: assim se desfez o sonho de Gandhi de uma só pátria indiana para as comunidades hindu e muçulmana; assim foi derrubado o governo nacionalista do Irão e no seu lugar entronizado o regime neo-feudal do Xá da Pérsia…

A desagregação dos países árabes, produtores de petróleo, gaz e minerais, ameaça agravar a crise económica internacional, mas promete aos detentores dessas matérias-primas e ao capital financeiro que nelas investe, fabulosas mais-valias de sangue!

São os povos árabes, conscientes do seu destino, que têm dentro de si a força e a capacidade de lutar pelas suas aspirações políticas fundamentais à liberdade, à paz e às conquistas sociais, e, só eles, podem vencer o terrorismo e trazer o progresso aos seus países.

1 comentário:

António C. disse...

Concordo plenamente.
Só no final ponho reticências, quando se afirma que serão os povos árabes, sozinhos a terminar com o conflito e ascender á paz.
Porquê?
Porque os povos não só monolíticos, como os países, onde vivem. A religião entre eles, não lhes permite sequer chegar ao diálogo, como sucede há cerca de 1600 anos. Não quer dizer, que não tenha sido o Mundo Ocidental um dos factores principais, para que a paz não se tenha alcançado.
Acho, que a paz no mundo muçulmano (entre si), levará mais de um século a alcançar-se, já que primeiro, têm que "obter" a educação e a ética, que parece por lá não existir.
Não sei, se durante esse século não causarão muita dor, sofrimento e morte, no dito Mundo Ocidental, se este não ajudar pela positiva, através da diplomacia e alguma força.
Todos perderão. Todos perderemos.
Apenas O Criador vencerá, seja Ele, Deus, Alá ou Outro, consoante a religião de cada um.