21.4.11

Ética política, eleições e violência verbal

O “caso Fernando Nobre” tem servido de base ao discurso crispado sobre a moral e a ética políticas. Confunde-se a moral partidária com a ética, que não tem partido. E eleva-se o tom da violência verbal, como se não fosse ela que prepara a violência política.

Não votei Fernando Nobre, nem apoiei a sua candidatura, pelas mesmas razões que me levam agora a opor-me ao conteúdo e à forma das críticas que o têm como alvo.

O pensamento e a conduta política de Fernando Nobre são eclécticos, isto é, não alinhados por nenhuma corrente ideológica e política em torno das quais se organizam tradicionalmente os partidos de esquerda e direita. E o seu princípio de actividade política, e cívica, parece ser o de que a acção de um homem pode fazer a diferença. Todo o seu passado confirma esta visão heterodoxa da política: anteriormente foi membro da Comissão Política da candidatura de Mário Soares à Presidência, em 2006; mandatário nacional do Bloco de Esquerda, nas eleições europeias de 2009, e membro da Comissão de Honra da candidatura de António Capucho, pelo PSD, à Câmara Municipal Cascais, em 2009. Não me recordo que nenhum dos partidos tenha na altura classificado esta errância de apoios como uma atitude oportunista, ou rejeitado o seu contributo em nome da coerência política.

Critica-se igualmente Fernando Nobre pela sua falta de experiência para o cargo de eventual Presidente da Assembleia da República, que constitui a base do seu acordo de candidato independente com o PSD, e enfatiza-se a lenta aprendizagem dos antecessores e a importância do cargo de 2ª figura do estado. Na verdade, apesar da relevância constitucional do cargo, ele nunca foi exercido nessa dimensão política, mas noutra função, o do discreto e consensual regulador do regimento parlamentar, que o putativo candidato poderá estudar e aprender a executar tecnicamente, com o apoio da competente assessoria. E a questão política é exactamente essa, Fernando Nobre fez um acordo original com o partido do círculo do poder, que, de forma inusitada o propôs, não para ser mais um dos deputados submetidos à disciplina e controle partidários, nem sequer para se tornar um independente entre outros, mas para poder ser independente num cargo que tem um limitado mas verdadeiro potencial de autonomia política constitucional, nunca antes exercida. Veremos como ele vai ser aplicado e cumprido.

Mas fê-lo na lógica eleitoral de trazer para esse partido o PSD, pelo menos uma parte dos votos que recebeu como candidato presidencial. Se o PSD ganhar, Fernando Nobre será co-responsabilizado pelas medidas programáticas deste partido, que poderão passar pela redução do serviço nacional de saúde e do apoio à escola pública e pela venda ao desbarato dos últimos anéis do estado, como a participação de 25% no capital da EDP, a privatização da CGD, etc…Ora Fernando Nobre, se apoiar esta política na campanha e no parlamento, passará a ser um dos “compagnons de route” dos denominados neo-liberais; ao contrário, ao demarcar-se, entra em conflito directo com a maioria de centro direita que o poderá eleger. Na resolução deste dilema se poderá avaliar o resultado político da opção de Fernando Nobre.

Até lá, o que prevalece é a sua colaboração com os Médicos Sem Fronteiras, a fundação da Assistência Médica Internacional, organização não-governamental, de que é presidente e através da qual participou como cirurgião em mais de duzentas e cinquenta missões de estudo, coordenação e assistência humanitária em cerca de setenta países. É o seu trabalho de professor catedrático convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e noutras universidades privadas. E o seu testemunho cívico, incluindo, para além da AMI as funções no Conselho Geral da Universidade de Lisboa, de presidente da Assembleia-Geral do Instituto da Democracia Portuguesa, vogal do Conselho Fiscal do Centro de Apoio a Vítimas de Tortura, membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, etc...Por tudo isto foi distinguido com a Medalha de Ouro de Direitos Humanos, da Assembleia da República, a Grande Oficial da Ordem do Mérito, a Legião de Honra de França, a Real Ordem da Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, a Grã-Cruz da Ordem Diocesana, de São Tomé, e a Ordem Nacional do Leão, do Senegal. É Cidadão de Honra de Cascais, Cidadão de Mérito de Portimão desde 1993 e Cidadão Honorário de Vila Nova de Gaia.

Não posso deixar de me preocupar quando tudo isto é esquecido, em nome da ética e da coerência políticas. Quando outra coisa, é a ética política.

A Ética Política

A dimensão ética do estado moderno e dos partidos que o governam avalia-se pelo respeito pelos princípios da ética política, universais e permanentes, que reconhecem a todos os indivíduos o estatuto de cidadão com duas pátrias, a sua e a Terra (Conferência das Nações Unidas para o Ambiente, Estocolmo 1972), a todas as culturas humanas um estatuto de igualdade (crítica do etnocentrismo) e reintegram a comunidade humana na pirâmide da vida e da biodiversidade sem nenhum estatuto de domínio ou privilégio (crítica do antropocentrismo), postos à prova sobretudo em épocas de crise e que se traduz numa ética política prática:

O princípio da cidadania ou da dignidade dos seus cidadãos aplicado em conjunto com a subordinação da economia e da política á ética ambiental, determina o dever do estado de garantir aos seus cidadãos o direito à paz, ao trabalho, à educação, saúde e assistência na velhice, o acesso à justiça, à conservação da biodiversidade e à liberdade, sim, a liberdade está colocada nesta ordem, pois desaparece com a guerra e vale menos sem o trabalho e os outros direitos sociais e com a destruição da diversidade da vida, as comunidades humanas não terão futuro.

Tais princípios cometem ao Estado democrático, liberal ou socialista, o dever adicional de combater contra a sua própria corrupção e decomposição.

O regime democrático segundo o modelo ocidental, apesar do pluripartidarismo, evoluiu em todo o mundo para um sistema de poder monopolizado pela oligarquia de dois partidos, sendo frequente a transferência de quadros e dirigentes entre ambos, e a troca de cadeiras dos ministros e altos funcionários entre os governos e as grandes empresas e bancos que antes tutelavam, sem escândalo social. No Japão americanizado pós 2ª Guerra Mundial, este fenómeno de corrupção da democracia política, por subordinação ao capital financeiro e empresarial, deu origem ao conceito de “amakurady”, que significa literalmente “alcançar o Paraíso” e foi decisivo para que o Partido do Liberal Democrata governasse o Japão ininterruptamente desde 1955 a 2009, monopolizando o poder durante 54 anos, um período superior à ditadura de Salazar em Portugal. E nos EUA institucionalizou-se com a legalização dos lobbies político-económicos, que compram e vendem influências e mobilizam os formidáveis recursos financeiros exigidos para as campanhas eleitorais.

Como fundamental é o controlo da comunicação social, veja-se o caso da ascensão de Berlusconi na Itália; a privatização da comunicação social, inicialmente nas mãos do estado, devido aos elevados níveis de investimento nas suas infra-estruturas, tem conduzido sempre à concentração e ao predomínio de um punhado de grandes grupos deste sector. Longe vão os tempos em que os partidos se empenhavam na literacia política das suas bases e eleitores, reunindo nas sedes e promovendo sessões de esclarecimento. O chavão político ocupou o seu lugar, no espaço mediático e a imagem do líder, imposta pela televisão, ou melhor, pela selecção dos futuros quadros dirigentes a quem a administração das estações de TVs querem dar visibilidade e por eleições directas sem programa nem ideais, impôs-se ao corpo do pensamento político e à sabedoria colectiva dos órgãos estatutários. Até os Congressos se transformaram num mero ritual de consagração do líder todo-poderoso, entronizado conde, entre barões e vassalos, em nome de uma pseudo democracia de eleição directa do líder, sem programa, ideário e núcleo dirigente.

Em paralelo, nos países socialistas, como a antiga URSS, uma União de Repúblicas com os novos órgãos de poder, os sovietes e as suas representações constitucionais, controlados durante largos períodos pelo mesmo núcleo dirigente, e por um líder inamovível, conduziria inevitavelmente à transformação do estado socialista num aparelho repressivo e burocrático, que reproduz o sistema capitalista de apropriação privada das principais mais-valias e repõe progressivamente a situação de desigualdade nos direitos políticos e económicos dos cidadãos, enquanto, no plano da política externa, renasceu o chauvinismo e o imperialismo. No domínio doutrinário e do pensamento político, corresponde-lhe o dogmatismo e a cópia mecânica das estratégias revolucionárias, que quase fizeram estiolar o pensamento progressista e desacreditaram os ideais do “socialismo científico”.

Mas o maior paradoxo das potências democráticas ocidentais, como da grande potência soviética, foi a duplicidade da sua política externa, conduzida para a defesa dos interesses imperialistas nas suas áreas de influência, com recurso à intervenção militar, à interferência nos assuntos internos dos países independentes e até ao terrorismo de estado, sob a forma de boicote económico, assassinato político ou agressão armada. O estado de guerra, à luz dos ensinamentos da história das democracias liberais e das democracias socialistas, é incompatível com a conservação e aprofundamento da democracia e contribui para criar as condições para a sua limitação e degeneração

A crise financeira e a agonia do estado de direito

Actualmente, a prometida regulamentação da actividade financeira, após a crise de 2009, traduzida em medidas concretas, parece reduzir-se à procura de uma actuação mais activa dos bancos reguladores e a medidas simbólicas de carácter moralizador. Esta situação é certamente preferível à complacência e à indiferença, mas não altera a natureza e a lógica de funcionamento do sistema financeiro. E, se o falseamento do valor real das mercadorias e produtos especulativos for muito mais profundo, o adiamento das reformas, que agora parecem radicais, pode fazer implodir todo o sistema económico. As mais importantes destas reformas, a substituição do dólar por uma nova moeda padrão internacional e o fim dos paraísos fiscais, foram abandonadas e esquecidas as recomendações da comissão de peritos da ONU. O Banco Europeu, controlado pela potência alemã, aproveita para aumentar o reforço do seu papel tutelar. Mas quem fiscaliza democraticamente a actuação do BE e que interesses diferentes pode a sua actuação defender? E as agências americanas de rating, controladas pelos Fundos Financeiros e Sociedades Financeiras anónimas, protegidas da lei e do controle do estado pelos paraísos fiscais, são quem dita os juros do mercado.

Pelo caminho actual a democracia económica enfraquece e na mesma escala cresce a marginalidade e a insegurança, mas também se renovam as lutas sociais. É um perigoso balanço entre a democracia política e o autoritarismo. O estado americano, endividado como a antiga potência soviética pelos formidáveis gastos improdutivos do complexo militar industrial (em 2001 379 biliões e em 2010 687 biliões de dólares, 6 vezes mais que a China e 11 vezes mais que a França, que ocupa o terceiro lugar deste sinistro ranking mundial) , caminha para a implosão  e só a compra dos seus títulos de dívida pela China e pelos países árabes, mantém ainda o precário equilíbrio.

O capitalismo, ao contrário do que sonharam e escreveram os líderes históricos das revoluções socialistas vitoriosas, que se julgaram, eles também, insubstituíveis e identificaram o estado socialista com a sua própria figura, renasceu sempre mais forte das suas crises, porque a sua força motriz eram o capital produtivo e a sua dinâmica de expansão mundial; deixando atrás de si, é certo, um rasto de destruição das forças produtivas e de guerra, mas chegando depois a um novo patamar de crescimento e prosperidade.

No nosso tempo a sua liderança está agora no capital financeiro especulativo, que dispõe de um incomensurável poder e ambição e tem a força e influência suficiente para destruir a própria estrutura do estado moderno, a África como a sua maior vítima, o estado de direito em perigo em todo o mundo.

E este é um facto novo e da maior relevância política na história das crises do sistema capitalista e da democracia moderna. E a ética ou a amoralidade políticas, têm na atitude face a esta questão crucial, a sua linha divisória.

Não há alternativa à esquerda?

Neste quadro, a responsabilidade política pela nossa crise, pertence, em primeiro lugar, à maioria democrata cristã e liberal que domina as instâncias de poder europeu e não enfrenta a oligarquia financeira, onde se filiam o PSD e o CDS. E simultaneamente, ao PS, que, se não se demarcar finalmente dessa política, completará a sua transformação no terceiro partido de centro-direita, como é o actual PSD; e se este vier a substitui-lo no governo, haverá alternância democrática na gestão do estado, mas não na política que nos conduz ao desastre.

A não ser que a esquerda que se reclama do passado revolucionário e do socialismo (s), assuma a responsabilidade histórica de lutar directamente pela partilha do poder, por razões políticas e éticas, pois o dever dos revolucionários, dos socialistas, comunistas e de todos os progressistas e patriotas, quando a sua utopia está longe, é lutar pelas reformas políticas e sociais realizáveis hoje e no seu próprio país, minorando o sofrimento do seu próprio povo. E não apostar na lotaria eleitoral, na ilusão de receber em troca do desespero popular mais votos, que o flagelo da crise empurrará para a direita ou no discurso sectário, que desgasta o aliado potencial mas deixa o poder real nas mãos do adversário político. Não serviram afinal para nada as eleições presidenciais? A maioria dos portugueses não votou em Cavaco Silva, mas não teve uma alternativa política de frente única onde concentrar o seu voto e materializar as suas aspirações e reivindicações políticas, e esse fracasso é da responsabilidade colectiva das direcções dos partidos e candidatos da esquerda e independentes, Fernando Nobre incluído.

A acção táctica recente do Bloco de Esquerda e do PCP, de se auto excluírem das negociações com a troika que negoceia o empréstimo da dívida soberana, é uma oportunidade perdida para fazer sentir aos representantes do capital financeiro a oposição de quase 20% da população portuguesa às suas receitas anti-democráticas, confrontando-os com outra política económica e financeira e mobilizando novas camadas populares para essa longa e difícil alternativa.

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