10.2.11

A África da revolução e da democracia: a hora do Egipto

Nelson Mandela escreveu no seu Diário Íntimo:

“A situação real no terreno pode justificar o recurso à violência, que mesmo os homens e mulheres bons podem ter dificuldade em evitar. Mas mesmo nestes casos a utilização da força deverá ser uma medida excepcional, cujo objectivo primordial deverá ser o de criar o ambiente necessário para soluções pacíficas. São estes homens e mulheres bons que constituem a esperança do mundo.”

Os países árabes importam cerca de 60% dos alimentos que consomem (Relatório do Banco Mundial_2009) e tornaram-se nos maiores importadores de cereais do mundo. O espectro da fome cresceu com a mesma dimensão do aumento demográfico.
No Egipto, a população multiplicou-se cinco vezes durante o século XX, a uma média anual de 2,3%, atingindo hoje 80 milhões; destes, dois terços são jovens e 90% estão desempregados. O problema agravou-se desde o início do conflito entre o Iraque de Saddan e os EUA, o principal destino da emigração dos egípcios pobres, que perderam o seu trabalho, enquanto a sua balança de pagamentos se desequilibrava ainda mais sem os petro-dólares.Em Setembro de 2010 “ A França tinha uma carteira de empréstimos a empresas egípcias e ao governo na ordem de 17,6 mil milhões de dólares e a Inglaterra de 10,7 mil milhões (Expressso)”. Mas estes fundos não beneficiaram a maioria da população: Os rendimentos do turismo, agricultura e exportação de petróleo e algodão, não chegam a 40% dos egípcios que vivem com menos de 2 dólares por dia.
A auto-imolação do jovem tunisino, Mohamad Bouazizi, a quem a polícia e o estado confiscaram a modesta carreta de frutas e legumes que vendia sem licença, foi a revelação de que esta massa popular imensa, dominada pela juventude, já não poderia viver mais como dantes, e este é o primeiro sinal da revolução eminente.
A Aljazeera, tantas vezes diabolizada pelos políticos ocidentais como instrumento do islamismo, transmitiu reportagens em directo, corajosas imagens da revolução tunisina e ascendeu o rastilho da revolução egípcia ( com a Internet e o telemóvel a tecer a sua rede celular) à velocidade do nosso século XXI. Mas a revolução já estava em marcha em toda a região, e as condições para o seu amadurecimento tinham-se gerado por força de outro poder menosprezado pelas ditaduras e democracias, a consciência revolucionária dos que “em baixo” sustentam a nossa sociedade.

Como a Europa ficou a dever à primeira revolução egípcia o início do projecto político da sua Comunidade

O Egipto entrou na História moderna com a revolução de 1952, o levantamento do grupo de oficiais comandados por Nasser, os oficiais livres.
E esta revolução deu início à história da Comunidade Europeia, como consequência da Guerra do Suez, a Segunda Guerra Israelo-Árabe desencadeada em 1956 por Israel, com o apoio da França e Reino Unido, que atacou o Egipto após Nasser nacionalizar o Canal de Suez.
Nessa altura o Canal era controlado por uma empresa anglo-francesa, remanescente da ocupação colonial iniciada no século XIX. Geoestrategicamente a Companhia garantia o controle da via marítima por onde o petróleo do Oriente abastecia toda a Europa e EUA.
Nasser queria transformar o Egipto através da construção da barragem de Assuão, que permitiria fomentar a agricultura, produzir electricidade, industrializar e modernizar o seu país; os bancos ingleses, da França e dos EUA, recusaram o financiamento e os egípcios viram na nacionalização antecipada do Canal (a concessão terminaria em 1968), a única forma de realizar o seu projecto de alimentar e desenvolver o Egipto, já que as suas receitas na época atingiam £35 milhões de libras.
No plano da política mundial, juntamente com a Índia de Ghandi e a Jugoslávia de Tito, o Egipto de Nasser queria ficar fora do conflito da guerra fria, impulsionando o seu país para o movimento dos não-alinhados. E a nacionalização do Canal era a única alternativa à dependência de um empréstimo dos novos senhores do Kremlin.
A Lei egípcia que decretou a nacionalização não poderia ser mais conforme as regras do mercado e do direito internacional: o pagamento imediato aos accionistas da empresa, indicado pelo valor de mercado, na bolsa de Paris.
Tudo menos uma expropriação, mas a imprensa ocidental comparou-o a Hitler, chamou-lhe comunista e acusou-o de querer criar um império islâmico.
Acresce que o governo de Nasser garantia a livre navegação a todas as bandeiras, com excepção de Israel, país que o mundo árabe não reconhecera, em virtude da ocupação dos territórios palestinianos e da expulsão violenta das suas comunidades árabes.
Os egípcios foram derrotados militarmente, mas os Estados Unidos da América e a União Soviética opuseram-se ao assalto franco-britânico e israelita do canal do Suez, obrigando os três países a retirarem-se dos territórios ocupados sob a supervisão das tropas das Nações Unidas, em 1959.
Em contrapartida, Israel conquistou a península do Sinai e controlou o Golfo de Aqaba, reabrindo o porto de Eilat e o acesso ao mar Vermelho.
Israel jogava também a cartada de se transformar na potência agrícola regional, com a irrigação do deserto do Negev (ocuparia na terceira guerra contra os árabes os montes Golan, na Síria, para controlar as nascentes dos seus rios).
A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço ganharia então uma dimensão de projecto político após a humilhação dos estados Francês e Britânico: De Gaule saiu da NATO em retaliação com os EUA e em parceria com o chanceler alemão Adenauer elaborou o plano estratégico para criar a nova potência União Europeia, mas a Inglaterra escolheu aliar-se ao império americano vencedor. Tal como Israel, que abandonou a aliança preferencial com a França, a quem ficou a dever o fornecimento das armas modernas e da aviação de guerra, mas também os segredos da bomba nuclear, em favor de uma nova dependência da política americana para o Médio Oriente, assumindo a tarefa política e militar de controlar de perto as suas gigantescas riquezas petrolíferas.

Os caminhos para a (s) democracia (s)

As reivindicações populares fazem relembrar o programa incumprido dos jovens oficiais livres: o pão, a liberdade e a independência, no entanto ainda não definiram o seu modelo de democracia política.
Mas o avanço da revolução democrática na Tunísia como no Egipto, contém desde já uma lição de ciência e de ética políticas:
A democracia não se exporta e impõe com exércitos de ocupação, como acontece no Iraque e no Afeganistão. Os povos árabes têm dentro de si a força e a capacidade de lutar pelas suas reivindicações políticas fundamentais.
E não tem ido fácil o caminho dos povos africanos para a democracia e o progresso social: Nos anos 50 a revolução africana dispunha de uma pequena elite revolucionária, que foi em muitos casos liquidada pelos seus inimigos colonialistas, como Lumumba no Congo belga e Amilcar Cabral na Guiné, ou afastada por golpes de estado, como Ben Bella na Argélia, mas sempre com a cumplicidade e mesmo o apoio activo de outros líderes locais.
O neo-colonialismo, depois de ter instalado os seus governos na África de influência francesa ou inglesa, e à medida que as grandes empresas multinacionais ganhavam a dimensão económica dum Estado, evoluiu na sua estratégia para a fragmentação dos estados africanos, através do apoio das suas administrações a facções político-militares e tribais apostadas no controle das matérias-primas e dos mercados. Onde intervinham antes os estados imperialistas, com as suas forças armadas, avançam agora as multinacionais associadas aos oligarcas e senhores da guerra locais. A Nigéria, rica em petróleo e o seu estado dissidente do Biafra (guerra de secessão de 1967-1970), foi o primeiro palco desta tragédia moderna.
O monopólio do poder pelos dirigentes nacionalistas e a sua corrupção conduziu, mesmo em países onde a revolução teve carácter mais radical, ao crescimento de tendências conservadoras de influência islâmica. A Frente Islâmica que venceu as eleições argelinas, sofreu de imediato um golpe de estado, apoiado pelo Ocidente, seguido de uma sangrenta guerra civil (1991-2002), que, se conservou o regime, semeou o fundamentalismo e o terrorismo no mundo árabe, desacreditando a via democrática.
Mas há um outro caminho para a democracia e a paz: o reconhecimento do direito das nações a disporem de si próprias e o incentivo moral, político e económico, para que cada povo encontre a sua própria via para a democracia moderna. Neste ponto, a resistência sectária das potências europeias à integração da Turquia na Europa comunitária (3% do seu território é europeu e o império bizantino integrou a cultura clássica europeia e a cultura oriental), constituiu uma oportunidade perdida para desenvolver a democracia nos países de influência islâmica e combater vitoriosamente o fundamentalismo.
No passado, não foram os reinos cristãos da Península Ibérica que destruíram a magnífica Córdoba do século IX, berço do primeiro renascimento europeu e da multiculturalidade dos povos e das grandes religiões do mediterrâneo. Foram sim os seus próprios irmãos de etnia, berberes fanáticos, o mesmo fanatismo que incentivou ao saque da Lisboa árabe do século XII pelos cruzados europeus e a Bizâncio cristã pelos cruzados venezianos. A lição histórica vale pelo inverso.
O terrorismo, qualquer que seja a sua origem e motivação política, será unicamente vencido pelos povos que o viram nascer e alimentar-se com o seu próprio sangue, evocando a causa comum.

Como a revolução democrática de Abril de 74, em Portugal, influenciou o mundo

A descolonização e democratização em Portugal não mudou apenas a correlação de forças no sul da África, em resultado da independência de Angola e Moçambique (1975), que deixou a Rodésia racista sem retaguarda, deu apoio à independência da Namíbia e isolou o regime de apartheid da África do Sul.
A derrocada dos regimes fascistas, militaristas e do apartheid contemporâneos, seguiria então um processo semelhante ao da revolução democrática portuguesa, impulsionado por crescentes ondas de manifestações e protestos populares pacíficos, que enfrentaram a repressão e enfraqueceram as ditaduras militares e oligárquicas, da Espanha à Grécia, ao Chile e Argentina, na Indonésia e Timor ou na África do Sul, talvez porque a revolução democrática tardia, no Portugal colonialista e fascista, que fez estremecer a Europa em 1974/75, tenha avisado as classes dominantes que a luta pela democracia e pela paz pode conduzir aos mais imprevisíveis resultados.
O processo histórico que na década de 90 do século XX viria a derrubar as repúblicas “socialistas e populares” foi igualmente acompanhado de grandes movimentações operárias e populares, ou da nova e mais numerosa classe média, que não tiveram de passar pela guerra civil para provocar a mudança de regime, facto novo na história das revoluções ( e contra revoluções) modernas, um caminho que a revolução de Abril de 1974 abriu, através da acção política independente e muitas vezes espontânea, de grandes massas populares, transformando o movimento subversivo liderado pelos capitães_MFA (Movimento das Forças Armadas) numa revolução democrática.
Será então possível ultrapassar o papel da violência na História e encontrar uma nova estratégia para realizar as utopias políticas que configuram o advento das democracias liberais e socialistas?
Em condições de ausência da democracia, seja o militarismo dos generais brasileiros ou o autoritarismo dos burocratas polacos, os sindicatos evoluíram para autênticas frentes políticas e assumiram um papel decisivo na mudança de regime, no Brasil e na América Latina, como na Polónia e no Leste europeu. E actualmente, na Tunísia. Nos países submetidos às ditaduras militares e fascistas, esse foi o papel dos partidos de esquerda e frentes democráticas.
Em Portugal, acresceu outro factor, determinante da queda do regime fascista: a guerra colonial prolongada. Na Argentina, seria a aventura militar dos generais com a ocupação violenta das ilhas Malvinas, ainda sob soberania britânica, e a guerra curta e sangrenta que se lhe seguiu, a precipitar a queda do regime.
A História viveu sempre destes paradoxos: as guerras, por mais brutais, são impotentes para garantir a paz perpétua. Mesmo o recurso às modernas tecnologias militares que produziram armas de destruição massiva, nucleares ou biológicas, significaria, para os vencedores, o primeiro e irreversível passo no holocausto da Humanidade e da Vida. Todas as contradições e oposições de classe e nacionalidade conduziram, ao longo da História, e ainda mais carecem num mundo em perigo que é o do presente e do futuro, a uma solução política!







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