Citação:
“Outro fator
contributivo que não pode ser ignorado é o facto de 98% de todos os incêndios
em Portugal terem origem humana. Dizer que “o povo português é o problema” não
é um eufemismo. Comparativamente com outros países do sul da Europa, com
condições de combustível e meteorologia similares, Portugal apresenta um número
desproporcionalmente elevado de ignições de origem humana relativamente à
população. Os portugueses não gostam de ser comparados com os seus vizinhos da
Península Ibérica, mas a Espanha que é cinco vezes maior e tem uma população
quatro vezes mais numerosa regista menos ignições de origem humana.”
Retirámos
a citação anterior da página 6 do Relatório denominado Gestão dos Incêndios Florestais em Portugal numa Nova Era, Avaliação
dos Riscos de Incêndio, Recursos e Reformas, de Fevereiro de 2018, de Mark
Beighley & A. C. Hyde, recentemente apresentado em Portugal pelo segundo,
com ampla divulgação dos meios de comunicação social.
Não
havia jornalistas disponíveis
Estes dois
especialistas americanos são os autores dos documentos congéneres, elaborados
sucessivamente em - 2018 Report - 2009 Report - 2008 Report - 2004 Report,
por encomenda da AFOCELCA, que podem ser
integralmente consultados em
https://www.isa.ulisboa.pt/en/cef/highlights/news/north-american-report-on-the-portuguese-wildfires.
A AFOLCECA
define-se como um Agrupamento Complementar de Empresas, criada em 2002 pela
união de esforços entre as empresas Aliança Florestal (Grupo
Portucel-Soporcel), Celbi (Stora-Enso), e Silvicaima (Caima).Actualmente, o
agrupamento mantém-se com as empresas florestais do grupo The Navigator Company
e do grupo ALTRI, articulando-se autonomamente no sistema nacional de proteção
contra incêndios florestais.
Mark Beighley
& A. C. Hyde são consultores privados, da Beighley Consulting LLC, que
antes ocuparam cargos relevantes na administração americana do setor.
Ao longo dos
textos em causa, invocam como fonte, sobre os incêndios em Portugal, outros
Relatórios do Sistema Europeu de Informação sobre Fogos Florestais (EFFIS) ,
relativos aos anos 2012 a 2016, o único período em relação ao qual se dispõe de
dados sobre os reacendimentos como causa específica.
O leitor cidadão
interessado nesta temática poderá consultar aqui esses documentos:
Da sua consulta
pode inferir-se que os dados apresentados sobre Portugal terão origem na nossa
estrutura de proteção civil, representada no EFFIS por dois elementos.
Os conteúdos
divulgados na comunicação social acerca da apresentação do Relatório por A. C.
Hyde, foram difundidos sem qualquer escrutínio, com critérios de parcialidade
não justificados e sem qualquer informação documental para contextualizar o
assunto.
Como não havia
jornalistas disponíveis para o fazer, faço-o eu, desvelando estas duas fontes e
com uma leitura crítica das afirmações mais sonantes, que agora começa.
Todo
um povo no banco dos culpados e uma nova era de fogos,
uma
era que não é para velhos (sic)!
O Relatório dos
técnicos americanos de 2018 conclui, logo no primeiro capítulo, que Portugal
entrou numa Nova Era de Incêndios Florestais, há pelo menos uma década:
“Por que razão Portugal se encontrou nesta situação tão horrível?
As respostas são basicamente as mesmas agora do que eram há uma década: (1) a
elevada percentagem de área florestal não gerida; (2) o aumento da quantidade e
extensão das cargas combustíveis; (3) o elevado número de ignições indesejadas
em condições de incêndio moderadas a graves; e (4) as alterações climáticas e
períodos crescentes de tempo quente e seco, que prolongam e aumentam a
gravidade de períodos críticos de incêndio.”
E os incêndios de
Outubro de 2017 são referidos como a prova real:
“Uma seca severa,
vagas de calor, extensas áreas florestais e de mato inflamáveis e um fenómeno
meteorológico – o furacão Ofélia, a meados de outubro – conjugaram-se numa
situação de “tempestade perfeita”. Bastava um fósforo, e Portugal tem milhares
de fósforos incontrolados.”
As medidas
propostas, mesmo se aplicadas, não excluem o risco de incêndios ainda maiores
(sic) e sublinham que o investimento deve concentra-se na prevenção e não na
supressão. Apontam depois duas estratégias gerais: Planeamento e Reforma
das Instituições de Defesa Contra
Incêndios como prioridade nacional. O foco na Gestão dos Combustíveis, Combate
e Prevenção de Incêndios Florestais. O leitor que valoriza as medidas técnicas
administrativas, já sabe onde as encontrar.
Mas o Relatório
coloca no seu centro o fator do comportamento cívico dos seus cidadãos e da
ação dos seus bombeiros, “pouco instruídos e envelhecidos” (sic).
Vejamos o que
escreve, para justificar a afirmação com que lançámos este texto: “o povo
português é o problema”. A Figura 6 (na página 20) é a que procura melhor evidenciar
a irresponsabilidade do povo português face aos incêndios, em escala comparada.
É verdade, que
logo relativiza a acusação, mas reafirma-a em seguida no mesmo parágrafo:
“De referir, em
primeiro lugar, que em Portugal, os dados sobre incêndios por causa são
escassos. Das 423.756 ocorrências registadas entre 2001 e 2017, apenas 27% têm
uma causa identificada. Cerca de 59% dos incêndios nunca são investigados e em
14%, as provas são insuficientes para determinação da respetiva causa (causa
desconhecida). A maioria destes incêndios tem uma causa evitável, como
queimadas pastoris e agrícolas, faíscas acidentais de equipamento defeituoso,
lançamento indiscriminado de foguetes, etc. E uma outra causa totalmente
evitável com origem no sistema de combate, os reacendimentos.” (Página 19)
Mas então, como
se pode ser tão categórico e afirmar, perante a audiência que o escutava no ISA
e as câmaras de todas as televisões, que não apenas 98% dos incêndios, mas até
99,5% dos incêndios em Portugal têm a mão dos seus cidadãos!?
Não haverá,
outras causas estruturais, acentuadas irreversivelmente pelos fenómenos novos
da mudança climática? As fontes consultadas pelos autores, conformam as suas
conclusões radicais ou levantam dúvidas e apontam caminhos mais complexos para
enfrentar a catástrofe iminente?
Observemos o mapa
elaborado pela organização internacional Greenpeace, relativo á distribuição
das plantações de Eucaliptos Globulus
na Europa: Como se podem comparar os 70.000 ha de plantações na Itália, com os
1.200.000 há na Península Ibérica? E estes com os 0 ha de eucaliptos na França?
Não há relação entre o fogo e o material combustível plantado?
E o que nos revela o mapa comparado de Espanha, já em 2015?
Quadro 3
É verdade que
somos o país com muito menos população que a Espanha, mas afinal temos tanto ou mais
eucalipto plantado que todas as regiões de Espanha juntas. A relação do peso comparado desta plantação monoespecífica peninsular com o mundo, é também
evidente: nós superamos os continentes, americano e africano!
Quadro 4
E, ainda em
2015, ultrapassamos a própria Austrália
nesta espécie:
Deixemos, então, falar os números
Fomos às mesmas fontes dos dois técnicos americanos e observámos
os números em que se baseiam as suas conclusões sobre a relevância do fator
humano, a mão que ateia o incêndio e o nível de eficácia dos principais agentes
da supressão do fogo, os bombeiros.
Citamos o outro Relatório, do Sistema Europeu de Informação sobre
Fogos Florestais (EFFIS) , datado de 2016.
“Of 13 261 occurrences registered in 2016,
the National Guard proceeded with the investigation of causes for 10 389 forest
fires 78%), of which 3 621 were of unknown origin (Figure 51).”
7.128
53,8%
“Amongst those fires with determined cause,
intentional acts corresponded to 34% .”
2.424 criminosos_18,2%
4.704 acidentes e negligência_ 35,6%
Assim sendo, o
quadro final de síntese, agora reproduzido, tem de ser integralmente revisto, em
primeiro lugar porque ele se refere-se apenas aos 53% de incêndios que foram
estudados e cumulativamente determinados nas suas causas.
Quadro 6
Assim sendo,
apenas tem fundamento concluir que 18,2% dos incêndios foram intencionais
(criminosos) e não 34%, como a Figura 52 procura evidenciar.
Por negligência, estão provados 2.118 ( 45% de 4.704 por acidentes
e negligência), isto é, cerca de 16% do
total global de 13 261 occurrences.
A que se vêm
juntar 940 reacendimentos ( 20% de 4.704 por acidentes e negligência), isto
é, um pouco mais de 7% do total global
de 13 261 fogos.
Na passagem dos
primeiros dados para esta Figura final, não se percebe onde foi parar a
categoria acidentais (os fogos) e como se determinou o valor de 1% de causas
naturais, tão pouco o significado deste conceito.
O que
são fatores acidentais e os novos fatores “naturais” da mudança climática?
Ou,
porque não se estuda a experiência do concelho de Mação?
Aproveito, pois,
para tentar contribuir para descrevê-los, mais além da causa “relâmpagos”, que
o especialista americano sublinhou, na sua entrevista televisiva, enfatizando
que a mão dos portugueses era responsável por “99,5% das ignições”. Esta
entrevista, cuja extensão desconhecemos, passou em todas as estações
televisivas, sem escrutínio e com estratos centrados na crítica ao trabalho dos
bombeiros. Já a imprensa escrita preferiu o slogan do homem que adivinhou a
tragédia futura.
Continuemos, para
a tentativa de esclarecimento do que poderão ser causas naturais e acidentais,
tomando os incêndios anteriores de Mação como fonte: Num concelho, que, como
nenhum outro tinha avançado no sistema integrado de prevenção e combate aos
incêndios, os responsáveis municipais detetaram 12 ignições simultâneas
provocadas por uma “trovoada seca”, que impediram o ataque concentrado aos
focos de incêndio, a que se somou uma ignição acidental provocada pela faísca
de uma máquina de rasto que procurava conter o fogo. Mais de metade do concelho
de Mação ardeu então, mas ninguém quis ouvir os seus responsáveis, nem quanto
ao plano avançado de prevenção, gestão florestal e combate, nem quanto às
lições a retirar de um povoamento florestal também ele já reduzido às grandes
manhas industriais de eucalipto e pinheiro.
Desconheço se o
especialista americano o fez. Mas recordo que o risco de tragédia foi
proclamado, explicado e as medidas para o esconjurar transformadas, desde há
mais de 30 ou 40 anos, em projetos, propostas, ações de formação, textos
científicos, empenhamento cívico, profissional e político, de uma imensa
minoria de homens de ciência, professores e investigadores, que não foram
escutados, nem apoiados, nem reconhecidos, rapidamente se viram afastados de
cargos de decisão, ou preteridos, na administração pública e nas empresas, dos
quais recordo, sem hierarquias e apenas pelas minhas circunstâncias de vida, os
nomes dos que mais frequentemente comigo se cruzaram no trabalho e na militância
cívica: Jorge Paiva, Eugénio Sequeira, João Evangelista, Luciano Lourenço, Carlos
Pimenta, João Caldeira Cabral, Ribeiro Teles, António João Veloso, Viriato
Soromenho-Marques, José Alho, Paulo Magalhães, Luísa Schmidt …
A sobrevivência
e renascimento do mundo rural, como questão nacional
Deixo aos meus
leitores pacientes o trabalho de continuar a consulta dos Relatórios do Sistema
Europeu de Informação sobre Fogos Florestais (EFFIS), como o de 2015.
“And accidents or negligence were present in the
ignition of 45% of the total number of fires (Figure 52). The use of fire for
renewal of shrub pastures in mountain grazing areas, still has a strong impact
on the burnt areas. Of 15 851 occurrences registered in 2015, the National
Guard proceeded with the investigation of causes for 12 114 forest fires (76%),
of which 3 872 were of unknown origin (Figure 55). “
Eles vos dirão se
vão na mesma linha daquele que aqui analisei.
Como vos desafio
a cruzar a curva ascendente dos incêndios com a linha de crescimento das
plantações específicas em Portugal.
Quadro 7
Fontes/Entidades:
ICNF/MA-MAFDR, PORDATA
Encontrareis uma outra curva mais trágica ainda, a das vítimas
mortais.
O ciclo de
mudança na natureza dos fogos florestais já começou afinal há muito mais de uma
década. Sabem-no melhor que ninguém as grandes empresas proprietárias das
plantações industriais, e destinatárias únicas de todas as produções florestais,
que começaram a deslocalização para Moçambique em larga escala.
Souberam-nos,
antes da nossa pós modernidade em caos, homens como Francisco Caldeira Cabral,
quando deixaram escrito:
“É tempo de afirmar que se a cidade é indispensável à organização
da sociedade e ao progresso da humanidade, se a indústria muito tem contribuído
para facilitar a vida e lhe dar conforto, é da paisagem rural que depende a
sobrevivência da humanidade, porque é ela com o mar, a única fonte de
alimentos, a única fonte de água potável, e o último suporte de atividade
biológica autónoma e equilibrada, indispensável à continuação da vida na terra.
Por isso a atividade da Sociedade Rural é a única que continua a ser
obrigatória, sendo todas as outras facultativas, quer a sociedade
urbana-industrial se aperceba ou não desse facto.” (Tóquio, 1964)
Este caminho está
muito para além do debate circunscrito aos fogos florestais: nós, só temos que o
seguir!
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