Os resultados, para além das aparências e um sistema eleitoral que distorce a representação do voto popular
O sistema eleitoral em França não
permite uma equivalência entre o número de votos e a eleição dos deputados. Ele
favorece os partidos tradicionalmente mais fortes e dificulta a representação
parlamentar dos eleitores dos novos partidos.
Historicamente, foi elaborado
pelas forças políticas que pertencem ao centro direita ou ao centro esquerda,
gaulistas, republicanos e socialistas, para se perpetuarem no poder, mas
sobretudo para não permitir grandes mudanças políticas. Esta tendência
acentuou-se na última década, com a viragem dos governos europeus para a
política austeritária, e no caso do PS francês, traduziu-se no incumprimento do
programa eleitoral do presidente François Hollande, em todas as questões
essenciais: controle dos paraísos fiscais, proteção do emprego e da reforma, reforço
do sistema público de saúde, de ensino e investigação, uma fiscalidade verdadeiramente
progressiva, a oposição efetiva ao hegemonismo neoliberal da Alemanha…
O presidente da República é
eleito com mais de 50% dos votos, em primeira ou segunda volta. O
primeiro-ministro é escolhido pelo próprio presidente, juntamente com o seu
gabinete de governo (ministros). Mas o governo precisa ser aprovado por uma
maioria parlamentar. A Assembleia possui 577 membros ( 1 deputado por cada
distrito eleitoral de 100.000 eleitores), eleitos para um mandato de cinco anos
através de círculos eleitorais. Por sua vez, o Senado possui 348 membros, dos
quais 328 exercem mandato de seis anos e são eleitos pelo colégio eleitoral e
12 são eleitos pelos cidadãos franceses residentes no exterior. Os senadores
são escolhidos pelos grands électeurs,
nomeadamente pelos presidentes das Câmaras Municipais e outros representantes
eleitos localmente.
Nas eleições legislativas o
deputado é eleito com mais de 50% dos votos na primeira volta ou, passando à
segunda volta os candidatos com pelo menos 12,5 da votação, só o mais votado é eleito..
Os partidos políticos
Na tradição francesa a Partido
Socialista Francês identificava-se com a esquerda, tendo com parceiros menores Os
Verdes (EELV) e o Partido Radical da Esquerda. O Partido Comunista, muito forte
após a II Guerra Mundial, onde foi a principal força interna de resistência ao
nazismo e ao governo colaboracionista e fascista de Pétain, vinha perdendo
influência depois da sua adesão à linha política designada como eurocomunismo
ou revisionismo.
A direita organizava-se em torno
do partido Les Républicains, que
perdera peso político na presidência anterior de Sarkozy.
Nas presidenciais de 2017 surgiu
o denominado partido social-liberal de Macron, titulado Em Marcha, que afirma
ser “nem de esquerda nem de direita”, mas na realidade reagrupou a ala direita do
socialista, que o promovera a ministro de Hollande e uma fração importante da
direita republicana. Macron, um jovem banqueiro, tornou-se membro do Partido
Socialista entre 2006 e 2009, foi nomeado secretário-geral adjunto da
Presidência da República por François Hollande em 2012 e tornou-se ministro da
economia em 2014. No governo Valls, promoveu reformas reclamadas pelas
associações do grande patronato e em 2016 saiu para se candidatar à presidência,
que venceu com 66% dos votos contra a candidata da Frente Nacional_ FN. Macron
obteve 8 437 940 votos e, Marie Le Pen, 7 564 991. ( Nas presidenciais de 2012
os 6 421 426 votos da FN representavam 17,90%).
A FN evoluiu para uma política contrária
à União Europeia, que critica pelo seu liberalismo financeiro, mas menos global
no que concerne à emigração, incidindo agora na oposição ao acolhimento dos refugiados
e emigrantes muçulmanos.
Ainda nas presidenciais de 2017, emergiu
com uma forte representação nacional o partido político liderado por Melanchon,
a França Insubmissa (FI), uma frente de
esquerda que federou a ala esquerda do PS, uma parte do partido comunista, militantes
sociais e ambientais, críticos da deriva neoliberal da União Europeia e do
austeritarismo. Denunciando a "deriva liberal" do partido, Mélenchon
deixou o PS em 2008 para fundar a Front de Gauche_ FG. Nas presidenciais de
2012, com a sigla FG ficou em quarto lugar
com 11,1% dos votos, 3 984 822 mas em 2017 subiu para 19,6 %, isto é 7 059 951 votos.
O significado político dos resultados
A vitória de Macron, enquanto
vitória do centro-direita, é acompanhada por uma abstenção histórica. Na 1ª
volta, onde realmente se medem as forças em presença, os candidatos a deputados
de La Republique en Marche, do
presidente eleito Macron, recebeu 6 391
269, que representam apenas 13,44% do eleitorado e 28,21% dos votos expressos!
Um valor que revela um apoio político muito minoritário do povo francês. Na 2ª
volta, La République en marche, com 7
689 970 votos, representando apenas 16,76% do eleitorado, obtém uma maioria
absoluta de 285 deputados. Os abstencionistas elevam-se a 24 403 480,
representando 51,3% dos eleitores. O sistema que distorce a representação
popular, continua a cumprir a sua lógica de favorecimento do centro-direita.
E fá-lo duplamente: Les Républicains, que sucedem à Union pour un Mouvement Populaire (UMP) recebem
na 1ª volta 3 573 427 votos, 7,51 dos eleitores que valem 15,77 % dos votos
expressos, em vez de 7 037 268, representando 27,12%, das eleições de 2012. Na 2ª volta, Les Républicains com 4 018 563 dos votos, representando 8,76 do
eleitorado e 22,41% dos votos expressos, constituem o segundo grupo parlamentar
com 108 deputados eleitos.
O centro-direita nunca foi tão
forte na sua maioria parlamentar, nem tão fracamente representativo do
eleitorado francês, pouco mais de 25% dos eleitores de centro-direita e de
direita verão os seus líderes governar a França.
A Frente Nacional, que obtivera 7
564 991 votos nas presidenciais, baixa para 2 990 454, apenas 6,29% do
eleitorado e 13,20% dos votos expressos, menos de 40% dos votos anteriores. E,
se recuarmos às legislativas de 2012, onde obtivera 3 528 663 votos, a queda é
de 15%.
Recordando 2002, Jacques Chirac
representante do centro-direita, então presidente da França, foi o mais votado
com 19.9% dos votos, 5 666 021 na primeira volta das novas eleições
presidenciais. Le Pen, o candidato da Frente Nacional, com uma política de
extrema direita xenófoba e racista, chegou ao segundo lugar com 16.9% dos
votos, 4 804 713 votos, ultrapassando o primeiro-ministro socialista Jospin,
que acabou em terceiro com 16.2% .
Assim sendo, a ascensão contínua
da FN, durante os dois últimos decénios, sofre nestas eleições o primeiro revés
infligido pelo voto popular, ou melhor, pela sua abstenção. A subida de 2 para
8 deputados é uma vitória de Pirro!
O Partido Socialista, que
tardiamente escolheu um candidato conotado com a defesa das políticas sociais e
apesar do apoio negociado com a Europa Ecologia - Os Verdes (EELV), sofre uma
derrocada que o reduz a um partido de pequena dimensão: Os 7 618 326 de votos,
representando 29,35 % estão agora reduzidos a 1.685.677 votos, 3,54% do
eleitorado e 7,44% dos votos expressos. O sistema desproporcionado francês
vira-se agora contra um dos seus criadores: dos 258 deputados em 2012 restam
apenas 28, é uma hecatombe política!
O aliado tradicional do PS, o Parti radical de gauche fica pelos 106
311 votos, 0,22 do eleitorado e 0,47 dos votos expressos, em vez dos 429 059 de
2012, reduzido a 3 dos 5 deputado de
2012.
Contas feitas, La France insoumise, que sucede à Front de gauche (FG) é quem sobe
realmente de 6,91%, isto é, de 1 793 192 votos
para 2 497 622 entre as eleições
legislativas de 2012 e 2017, representando 5,25 % do eleitorado e 11,03% dos
votos. Mas se compararmos com os 7 059 951 votos das presidenciais, a queda é
abissal, mostrando a fragilidade do seu apoio popular. O sistema eleitoral
concede-lhe apenas 15 deputados.
Cresce igualmente o Partido
Comunista Francês, em 2012 diluído na Fronte
de Gauche, com 1 615 487 votos, 1,29% do eleitorado e 2,72% dos votos
expressos, alcançando 10 deputados.
Crescem os pequenos partidos do
centro, o Modem herdeiro de Le Centre pour la France (CEN) 458 098 votos, 1,7% , para 932
227 votos, 1,96% do eleitorado, 4,12% da
votação, o qual, na 2ª volta atinge perto de 1.083.000 votos, muito abaixo do
Partido Comunista Francês, mas que lhe permitem eleger 40 deputados,
demonstrando assim a incongruência democrática do sistema! Tal como a Union
des Démocrates et Indépendants, o antigo Nouveau Centre (NCE), de 569 897 votos para 687 225, também ele,
apenas com uma parcela do voto dos comunistas, da França Insubmissa, ou da
Frente Nacional, chega a 16 deputados!
Descem os Ecologistes, que tinham ultrapassado em 2012 os 1,6 milhões de
votos, e nestas eleições se quedaram abaixo do milhão, reduzidos a um único deputado pela
perversidade do sistema.
Existem ainda outras pequenas forças
políticas, mas a análise dos seus resultados nada acrescentaria a esta
reflexão, como os regionalistas, diversos de esquerda e direita.
Se parece óbvio que o sistema
eleitoral está concebido para facilitar a hegemonia das duas áreas políticas
dominantes, que agora se viram compelidas a mudar de siglas e protagonistas, a
segunda volta mostra que o seu eleitorado tradicional, agora substancialmente
reduzido pela abstenção, concentra votos, não apenas contra a FN, mas também
contra a França Insubmissa e o Partido Comunista Francês, limitando a sua
representação parlamentar.
O radicalismo do programa liberal
do presidente eleito, com uma base popular de apoio minoritária, para além das
aparências que a maioria parlamentar sugere, coloca a França no caminho de uma
ainda mais profunda instabilidade política, de onde pode emergir uma solução de
extrema-direita reforçada ou uma frente democrática de centro-esquerda, que
recoloque o Partido Socialista Francês no campo da social-democracia e na rota
de aliança com a FI e o PCF. É neste contexto que o acordo política que suporta
o governo atual de António Costa, constitui uma referência para os seus
homólogos de França…e de Espanha.
Sem comentários:
Enviar um comentário