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Com bonomia e com o sincretismo
(im-) possível
A propósito da “transgressão
deformadora do cinema pela literatura” (LAC): O cinema partilha com a
literatura categorias várias da estrutura da obra e dos seus valores estéticos,
por exemplo, da composição e por aí poderemos chegar “à conclusão de que talvez
todos os truques e processos abstratos de composição exprimam, por si próprios,
uma interpretação ideológica do assunto apresentado.”(SE) Recordo-me, a
propósito, da transcrição das aulas de um dos criadores do cinema moderno onde
o estudo comparado das obras clássicas da sua Literatura nacional era um método
recorrente.
Ao ler que MO fundiu “um autismo de linguagem cinematográfica com
o anacronismo das suas fontes literárias” (LAC), ocorre-me a frase de Eduardo
Lourenço a propósito do novo romance português, que se anunciava com a “Sibila”
e o “Rumor Branco”: “admirável anacronismo!”.
“Nem desinteresse pelo lá-fora
cultural e literário, nem idolatria. …a
novidade é que desta vez a ressonância é de pura superfície, a imitação quase
só reduzida a certos aspetos formais nalguns…Bessa Luís, Cardoso Pires, ou
Almeida Faria”.
E definindo a sua especificidade
literária: “admirável anacronismo, ”alimentando-se“…da nossa realidade mais
visível…”, incomum no contexto das literaturas contemporâneas“…cujo grande tema
é a desmontagem e a contestação ao nível mais radical, o da linguagem mesmo_ do
que a literatura foi ou quis ser”.
Sentencia LAC que já “Aniki-Bobó
se encontrava obsoleto, ao colocar-se ao lado do Neorrealismo, contra a voragem
surrealista”.
Ignoremos o facto que a vaga
surrealista se ergueu vinte anos antes do
Aniki-Bobó (1942) e como envelheciam rapidamente nessa altura as
vanguardas estéticas, e consideremos a
classificação de “obsoleta” atribuída à estética neorrealismo. Foi contra esta ideia
etnocêntrica, de que existem culturas e estéticas maiores e menores, que se
iniciou o combate e a construção da arte e da estética modernas, ainda no
século XIX. Então, a Crítica da Forma, ao analisar a obra de arte no seu
contexto estilístico e técnico, permitiu ultrapassar a parcialidade da
tendência historicista, que reduzia a arte à reconstituição das personalidades
artísticas dos autores e encomendadores, artificialmente isolados da vida e das
influências socioculturais. E ajudou a combater os preconceitos contra as
formas artísticas consideradas bárbaras ou menores, superando a hierarquização
a-científica entre períodos clássicos e
de decadência. Este novo quadro teórico permitiria abrir caminho à revolução
formal que marca o advento da arte e do cinema.
E é sob esta ideia, que não
reconhece que as diversas correntes estéticas são igualmente ramos da mesma
árvore que é a cultura da humanidade, sem qualquer hierarquia ou superioridade,
que se construiu “ a colonização anglo-saxónica” (LAC), se vendeu a Europa a
uma certa América ( há outra, multicultural), essa sim, monstruosa “ máquina de intoxicação hollywoodesca”.
Enfim, “a implícita exclusão totalitária de
quaisquer outras (LAC)” fontes literárias de que é acusado MO é suportável pela
consulta dessas fontes? Agustina Bessa-Luís, João Rodrigues de Freitas,
Francisco Vaz de Guimarães, Helder
Prista, Madame de Laffaiette’s, Luís de Camões, José Régio, Dostoievski, Nitzshe, Raul Brandão…e a
Bíblia. “ Ecletismo, ou “admirável ecletismo”, talvez!? Mas, totalitarismo!?
Descreveu-nos ainda um MO todo
poderoso, “teve nas mãos um mundo
inteiro” (LAC) e, podendo, “ coartou à cinematografia portuguesa a
possibilidade de se tornar num motor vanguardista de uma hipotética
revitalização da linguagem europeia”?(LAC)
Mas como, se autor de uma
estética obsoleta, promovido como comparsa do “ cinema mais retórico do Mundo,
o Francês”, não tinha talento
cinematográfico acima do estatuto menor de “realizador típico”(LAC) ? E LAC acredita
mesmo, que para enfrentar “o expansionismo neoliberal”, podemos esperar o
advento de um outro David moderno capaz de derrubar o Golias hollywoodesco?
Uma estética de MO, “
estridente”, de “onanismo pictórico”, negando pelo discurso recitativo atores e
enredos (LAC), ainda vá que não vá, mas wagneriano obsoleto? Qual é o herói
wagneriano que veste a pele de D. Sebastião, herói (negativo) e único, do
realizador?
Permita-se-me uma outra leitura
do Aniki Bobó: Para o filme de Manuel de Oliveira não é o carácter instrumental
do apetrecho que interessa, os retratos
dos meninos da Ribeira estão lá, mas o
que importa é que no seu aspeto pobre fitam-nos a dificuldade e privações da
sua condição de filhos de trabalhadores, no cenário do rio estão os frutos dos
socalcos doirados do Douro e da sua faina fluvial, sob os planos que seguem os
seus passos insinua-se a fadiga dos dias que só a noite acalma, por estes
pequenos e espontâneos atores passa a angústia da fome eminente e a silenciosa
alegria de vencer a miséria, pertence à terra e está abrigado no mundo dos
trabalhadores da Ribeira, eles são o
ente que reluz, olha-nos e torna-se presente, surge repousando em sim mesmo,
com a sua solidez que conjuga todas as coisas segundo o modo e a extensão ( MO, heideggeriano).
A Arte é Coisa e mais Outro,
alegoria e símbolo. A interpretação das coisas pela matéria-forma vem da Idade
Média (fundada na Fé) à Idade Moderna (o transcendental Kantiano). E continuo
eu, já sem esperança de sincretismo, como um longo e “indigerível” plano de MO:
A Crítica de Arte e da História da Arte, se contêm, em si, elementos de
progresso, estes não excluem ou invalidam as mais antigas contribuições
metodológicas, o que implica, neste campo, como em todos os domínios culturais,
rejeitar o seguidismo em relação à vanguarda e à moda, e, de igual modo,
recusar “o complexo de superioridade” que alguns especialistas reclamam para a
sua área específica. Tal como o uso das calculadoras eletrónicas não invalidou
o uso da tabuada e o disco informático não ocupou o lugar do suporte de papel
que regista o pensamento humano. E, sem esquecer, que existe na Arte um
território talvez irredutível ao conhecimento humano, demasiado complexo para
que possa ser racionalmente definido e onde a Estética, que é do domínio da
Filosofia, é a única bússola.
A essência da arte seria então a
pôr-se-em-obra da verdade do ente, a arte deixa de ter a ver com a Beleza, que
pertence à estética. Mas a verdade na Arte não é já cópia e imitação do real. A
obra de arte às coisas dá um rosto e aos homens a visão deles mesmos. A obra
abre um mundo e mantém-no aberto. A essência da verdade é desocultação. A obra
move a terra para o aberto do mundo, como o pequeno herói do Aniki Bobó olha a
montra inacessível e tão perto do seu desejo de posse da boneca, passaporte
para o amor. E, então, ao abrir-se o mundo, todas as coisas adquirem a sua
demora e pressa, estreiteza e amplitude, distância e proximidade, pertencem ao
ambiente velado onde se inserem e ganham dimensão e ligação entre si. E, nesse
momento de dupla desocultação, é que a matéria se torna produtiva, se
metamorfoseia em Arte, a cor ganha luz, o metal resplandece, a linguagem obtém
o dizer. (!)
Disse-o, no artigo de divulgação
escrito contra os argumentos da primazia do mercado e do elitismo da
filmografia de MO, que a palavra, na linguagem fílmica de Manoel de Oliveira e
os longos planos que a suportam, constituem um elemento distintivo da poética
do realizador, resistindo à imagem volátil dos filmes de série e do estereótipo
de Hollywood. E, “hélas”, conquistando
mercados internacionais!?
Disse também que todas as suas
personagens (físicas) vestem a pele dum único ator, o povo português e, dele
partindo, uma única personagem metafísica atravessa toda a filmografia de MO, a
condição humana.
O filme é um não-lugar que cria
um universo, o do cinema e este sela a experiência do realizador. A imagem é
enganadora, um signo aberto sobre outro (Barthes), o ver o filme conduz às
profundezas onde a experiência se sedimentou, lugar de todas as
associações ( Pomar).
É certo que este não é o tempo
“escolástico” (LAC), mas também já não é o do “cartesianismo” (LAC). É-o sim da
física relativista e quântica, que nos revela a natureza no seu estado para
além do átomo, de movimento contínuo entre o infinitamente grande e pequeno, de
indeterminação e relatividade de todos os elementos, em permanente transformação
de energia e forma, de substância e estado, ordem aparente e caos absoluto e
universal, acaso, acompanhando a mundialização da cultura e do consumo.
A Estética mudou os seus
princípios agarrando-se àquelas ideias de autonomia, ao pluralismo das leituras
e sentimentos provocados pela arte, na arte e no artista, aceitando o papel
ativo do observador como parceiro da revelação dos seus elementos
constitutivos_ do mesmo modo que aquele papel se constituiu como um dos
princípios fundamentais da física quântica e relativista.
Assim se compreende a sua (LAC)
leitura da dimensão política da obra de MO: o percurso em obra do realizador é
classificado na categoria colaboracionista de quem “ não incomodou antes
(fascismo) e ainda incomodou menos depois (democracia liberal)”…porque António
Ferro deixou passar o seu documentário “Douro, Faina Fluvial (1931)”? Mas não
elogiava o fascismo o valor do trabalho, do mesmo modo que censurou ao
Aniki-Bobó o ter desvelado a pobreza? …E quantos filmes de MO passaram na TV pública
de todos os governos democráticos comparados com “os filmes cómicos” do
anterior regime?
Depois, a acusação sobe ao topo
moral: “…patrocinado pelas culturas colonizadoras… castrou a nossa
criatividade” e “…instaurou um irremediável Mar Morto da nossa
cinematografia…”culminando na “…nossa crítica maior, a do papel desempenhado
por Manuel de Oliveira como agente contemporâneo de um neocolonialismo
cultural”.
Mas não é esse o lugar ocupado
pelo gigante Hollywood e pelos seus realizadores de serviço, mal comparados ao
“homem de província, do Norte” (LAC)? E, portanto, não representa afinal,
aquela crítica, uma “anacrónica impossibilidade dos contrários” (LAC) ?
Na perspectiva de Carl Argan,
dois tipos de correntes artísticas caracterizam o século XX. Argan inclui, no
primeiro grupo, o cubismo, as vanguardas históricas, a arquitetura racional, o
desenho industrial, o stigl, os construtivistas e os novíssimos programadores
multimédia, tendo como substrato cultural comum a intervenção da arte na
mudança da sociedade.
No segundo grupo coloca a pintura
metafísica, o dadaísmo, o surrealismo e as suas variações mais recentes,
particularmente as que a cultura americana produziu, unidas pela recusa de uma
qualquer relação com a realidade, de refúgio num mundo de indiferença e
niilismo.
Clement Greenberg considerou a
placa de pintura rasa e o monolitismo das esculturas-objectos, como uma
autêntica revolução destinada a pôr fim ao ilusionismo visual e táctil, mas
numa linha de continuidade pós-Moderna que remonta a Monet, a qual renova mas
mantém separadas as divergentes artes, na procura da neutralidade, isto é, de
autodefinição da Arte que se basta a si própria. Tal como Harold Steinberg viu
nos novos artistas (Jonhs, Rauschenberg...), a rotura com toda a tradição renascentista,
a anulação das diferenças entre pintura e escultura e, depois, a integração das
artes, onde a neutralidade era afinal a novíssima modernidade.
Fico a pensar que se MO ser
chamasse Steinberg e “anulasse” as diferenças entre composição literária e
composição cinematográfica, ganharia o estatuto de pós-moderno. E, se a seguir
filmasse o Velho do Restelo no jardim do seu condomínio, receberia o rótulo de
uma obra de arte Combine...
E porquê, a talho de foice, flagelar
Saramago? “Ao contrário de Saramago, do qual se distingue pela não negatividade
de caráter e pela fidelidade aos lugares da identidade nacional” (Mo),
Saramago, o infiel à Pátria ?, que deixou ao seu país tenças e cabedais, o da
jangada de pedra que não ruma às Índias ou às Américas mas retorna sempre à
terra mãe…e assenta-lhe o golpe de
misericórdia “Assim como a Academia Sueca, em risco de terminar o séc. XX sem
nunca ter atribuído um Nobel à monumental e milenar literatura portuguesa,
incorreu no erro de o desperdiçar num epifenómeno de visibilidade duvidosa”
(MO); errou a Academia e errou o mundo inteiro, nem um crítico literário, um
único professor de literatura, gritou que esse José vai nu de talento
literário…!?
Avanço finalmente em grandes
passadas para o futuro, “como um louco maior que a sua loucura” (MF) e ali me
encontro pela primeira vez de acordo com o autor do texto “Manoel de Oliveira,
um duplo e demasiado adiado adeus”.
Mas não sem que um pensamento
perturbador me assalte: a luta pela emancipação da mulher e o reconhecimento do
seu estatuto de plena dignidade humana, não é afinal a última fronteira dos
nossos preconceitos, a condição da longevidade está ferida por uma moral
pragmática que determina um novo imperativo categórico: envelhever sem sexo,
sem trabalho, sem poder político…e sem realizar filmes.
Mas nesse futuro sombrio, que não
nascerá da pena dos escritores, doravante inútil, mas do lavrar da crise
financeira, da crise ambiental e da queda dos impérios modernos, armados para a
guerra apocalíptica, química, biológica ou nuclear e onde não haverá lugar para
nenhum museu ( O museu do Esquecimento é o anátema de LAC), outros entes, se a vida brotar de novo, porventura mais sábios,
porque prudentes, guardarão piedosamente essas imagens estilhaçadas dos filmes
de todos os Oliveiras, admiráveis fragmentos.
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