14.11.10

A China, que desconhecemos e os direitos humanos

…A China introduziu nas ciências políticas um novo paradigma que baralha os dogmas da história: um país, dois sistemas.
…O mundo é mais complexo do que o modo como o representam os dogmáticos de todas as cores e é nessa diferença que reside a nossa esperança de evitar a catástrofe iminente.

A revista americana Time de 28.09.09 dedicou à China a sua capa e publicou um quadro comparativo da nação chinesa, antes e depois da República Popular, fundada em 1 de Outubro de 1949:

A população, que era de 542 milhões, cresceu para 1.300 milhões de cidadãos. A esperança de vida passou de 36,5 para 73,4 anos. O rendimento per capita elevou-se de 51 dólares para 2.770. As “foreing-exange reserves”, anteriormente inexistentes, elevaram-se até 2 “triliões” de dólares, as maiores do mundo. O número de estudantes no ensino superior passou de 112.000 para 2.200 milhões, em cada ano lectivo. O analfabetismo, que atingia 80% da população, praticamente foi erradicado e o ensino básico e secundário abrange hoje 206 milhões de jovens. A mortalidade infantil caiu de 1.500 para 34,2 por 100.000 nascimentos.

Na época actual a economia chinesa está profundamente ligada ao sistema capitalista internacional, pelo que, a sua resiliência merece uma atenção especial, liberta de preconceitos ideológicos, nomeadamente da visão eurocêntrica que menospreza a(s) cultura(s) americana (s) e desconsidera as culturas orientais, que mal conhece. É provável que o epíteto de “vulnerable economie”, com que a revista The Economist em Dezembro de 2008 ainda brindava a economia chinesa, soe agora como estranho, face ao seu comportamento em plena crise, e tanto mais que no mesmo número a revista reconhece que, actualmente, dois terços da produção de mercadorias na China provêm de empresas que não pertencem ao sector nacionalizado, enquanto que o estado domina os sectores chave da banca, telecomunicações, energia e comunicação social. (The Second Long Marsh, pág. 29). Neste artigo, citando as estatísticas do Banco Mundial, The Economist ilustra com três quadros o progresso da democracia económica na China, nos últimos trinta anos, sem nunca mencionar aquele conceito: 200 milhões de cidadãos retirados à pobreza, o quadruplicar do rendimento da população rural e um crescimento de 70% da produção de cereais, num país continental que, em comparação com a Europa, possui apenas 40% de terra arável.

Alguns dados sobre a democracia (económica e política) popular

A estes dados acrescento o principal contributo do Partido Comunista Chinês_PCCH para fundar o denominado regime de “democracia popular”, com base na democracia económica e tendo em conta a Declaração Universal dos Direitos do Homem, muito citada mas pouco conhecida nos seus 30 artigos: a distribuição aos 500 milhões de camponeses da posse da terra, que tornaram agricultável ao longo de quatro mil anos de civilização (Declaração Universal dos Direitos Humanos: Artigo 17° Toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade) e tê-los libertado do flagelo dos senhores da guerra, e conquistado a paz, a coexistência pacífica entre 56 nacionalidades, instrução, cuidados primários de saúde e assistência social básica, tal como o direito generalizado ao trabalho.

Foi no Tibete onde a revolução chinesa provocou a mais profunda mudança, pois o seu regime conservava a servidão feudal e mesmo formas de escravatura, e os principais mosteiros e os seus lamas eram senhores absolutos e grandes agiotas. O actual Dalai Lama foi o primeiro representante do povo do Tibete na Assembleia Nacional Popular da China, mas passou à oposição quando se tratou de aplicar plenamente as reformas democráticas.

Também não é certo que a China seja o maior responsável pela poluição do mundo, embora tenha actualmente ultrapassado os EUA como emissor anual de CO2. Essa responsabilidade cabe ainda aos EUA, que emitiu 28% do dióxido de existente na atmosfera, depois vem a Europa (20 %) e só então a China (8%). Mas o índice de poluição per capita da China é cerca de um quinto do consumidor médio americano (19,4 T) e um pouco mais de metade do europeu (8,6 T), tendo como referência o ano de 2007. Neste quadro, as potências ocidentais precisam de assumir as suas responsabilidades no fracasso da cimeira de Copenhaga, de negociar ( e de reformar a sua economia e modo de vida), não só com a China, mas também com a Índia, etc., para que o aquecimento global seja sustido e reduzido, em todos os países e o progresso se generalize em todas as nações.

A Assembleia Nacional Popular é o órgão do poder supremo. Todos os cidadãos maiores de 18 anos têm o direito de eleger (e ser eleito) o seu representante à Assembleia Nacional Popular. Na China, os representantes da assembleia popular aos níveis de aldeia e distrito são eleitos diretamente. Os representantes aos níveis mais altos são eleitos indiretamente. A Assembleia Nacional Popular é composta por representantes eleitos em todas as províncias, regiões autônomas, municípios e no exército. As assembleias populares de todos os níveis têm o mandato de 5 anos.

As funções básicas da Assembleia Nacional Popular da China incluem a elaboração e aprovação do programa nacional de desenvolvimento económico e social, cabendo-lhe, além do poder legislativo, eleger ou demitir os principais líderes chineses, tais como, o presidente do país, o presidente do Comitê Permanente da Assembleia Nacional Popular, o primeiro-ministro do Conselho de Estado e os seus ministros e outros líderes, como o presidente e o vice-presidente do Supremo Tribunal Popular. Foi a Assembleia Nacional Popular que procedeu à aprovação das versões da Constituição datadas de 1954, 1975, 1978 e 1982. A China é um estado de direito, com um sistema hierarquizado de tribunais populares e uma Procuradoria independente.

Existem no país oito partidos que foram criados durante o período anterior à fundação da República Popular da China, denominado Guerra de Resistência à Agressão Japonesa e a Guerra de Libertação da China, com base numa aliança com o Partido Comunista da China: O Comité Revolucionário do Partido Komingtang da China, com cerca de 650.000 membros, fundado em 1948, é dos mais representativos e o seu principal objectivo é a reunificação do país; a Associação da Construção Democrática da China, nascida em 1945, composta por empresários e quadros empresariais, predomina em número com os seus 850.000 aderentes; a Sociedade de Três de Setembro, nascida em 1946 e com 80.000 aderentes, a Associação de Fomento da Democracia da China, com 80.000 membros, fundada em 1945 e o Partido Democrático Camponês e Operário da China, com origem em 1930 e 81.000 inscritos, representam quadros e trabalhadores intelectuais; o Partido Zhi Gong remonta a 1920 e integra sobretudo chineses que retornaram ao país, contando com 20.000 membros; a Liga Democrática da China é um núcleo de 156 intelectuais do sector educativo e cultural com origem em 1941; e a pequena, com 1600 membros, Liga para Democracia e Autonomia de Taiwan, criada em 1947 por personalidades nascidas naquela ilha, completam o sistema multipartidário Chinês, que continua a desenvolver-se.

Na estrutura superior do poder destaca-se a Comissão Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês e os seus orgãos locais, com funções de consulta política e supervisão democrática, compostos por representantes do Partido Comunista da China, partidos democráticos, personalidades não partidárias, entidades populares, todas as minorias nacionais e todos os sectores sociais, incluindo as Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e Macau, Taiwan e chineses regressados do exterior, com mandato de cinco anos.

Os presidentes dos comitês centrais dos oito partidos democráticos são vice-presidentes do Comitê Permanente da Assembleia Popular Nacional e da Comissão Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês.

No plano interno, o PCCH, com 76 milhões de membros, evoluiu para uma abertura interclassista e uma direcção colectiva com mandatos limitados, e, nas diferentes Assembleias Legislativas e Consultivas, municipais, provinciais e nacional, renovou-se a tradição da frente ampla dos tempos de Mao, enquanto os principais mandatos políticos, como é o caso da Presidência da República, viam a sua duração reduzida a cinco anos.

A China introduziu nas ciências políticas um novo paradigma que baralha os dogmas da história: um país, dois sistemas. Nenhum regime de democracia ocidental foi alguma vez tão longe no plano da democracia política institucional, ao nível do dualismo no próprio estado. O autor do artigo da Time chama-lhe “hibrid model of quasi-state capitalism and semidemocratic authoritarianisme”.

As liberdades de pensamento, mobilidade, expressão e criação artística progridem a partir do intercâmbio mundial dos estudantes, intelectuais e cientistas, técnicos e trabalhadores qualificados; da generalização do acesso e uso da Internet, e da expansão da galáxia cibernética, que faz deste país o terceiro do mundo em número de utilizadores; enquanto a China se tornou, não apenas no primeiro país receptor do turismo internacional, com 81 milhões de chegadas, como num dos maiores países emissores, ultrapassando a Itália e o Japão.

A República Popular como alicerce e caminho da democracia chinesa

A complexidade e a originalidade da China, uma magnífica e ancestral civilização com mais de 4.000 anos, e a circunstância de o sistema feudal ter durado neste país até à nossa época, criaram condições materiais e de consciência social que determinam necessariamente um modelo e um percurso da democracia chinesa, sem paralelo no mundo. O seu primeiro passo, a construção dos alicerces da democracia económica, com a abolição das relações feudais de propriedade e a entrega da terra a mais de quinhentos milhões de camponeses pobres, foi acompanhado pela criação das estruturas base da banca, telecomunicações, energia, comunicação social, educação, saúde e investigação, primeiro nas regiões conquistadas pelo Exército Popular da China_EPL e depois com a fundação da RPCH. Em 1979 os impostos e taxas dos camponeses correspondiam a 41% da receita fiscal. Caíram, à medida que se desenvolviam a indústria e os serviços, para 1% do total da receita fiscal no ano de 2003. Aproximava-se do fim a longa marcha para a paz e o bem estar deste povo de laboriosos e engenhosos camponeses, que há 40 séculos suportam “a metade do céu” do palácio imperial. Já no século XVI, o jesuíta português Fernão Mendes Pinto, que demandou a China para a evangelizar, profundamente impressionado pelo nível cultural da corte chinesa de seiscentos e pelos elevados princípios de justiça da sua governação, escreveu na sua obra “Peregrinação”, que a única forma de converter a China, era converter primeiro o imperador! Na Nova China, a dolorosa experiência da Coreia e o trágico “grande salto em frente”, colocaram a questão da necessidade de considerar o peso decisivo do progresso científico e tecnológico; as profundas convulsões da revolução cultural e os dramáticos acontecimentos de Tienamen, puseram em causa o papel histórico do PCCH e dos seus aliados políticos. Mas o povo Chinês, incluindo a sua moderna e crescente classe média, parece ter continuado a escolher o seu próprio caminho de mudança e reforma.

No interior do Partido Comunista Chinês instituíram-se métodos de eleição que permitem a pluralidade de escolha. O último Congresso Nacional do PCCh foi o primeiro em que o número de candidatos aos lugares do Comité Central era maior que as vagas disponíveis. Na luta ideológica interna e na relação com a sociedade, a prioridade é o combate à corrupção, acompanhado pela exigência de elevada qualificação dos quadros e a crescente poluição está a conduzir a um crescente elevar da consciência ecológica, entre a juventude e a elite política e científica (veja-se o testemunho de Al Gorre, no seu filme “Uma Verdade Inconveniente”).

O saldo da balança comercial da China com o mundo atingiu 140 biliões de dólares em 2006. E a conta corrente de comércio total (exportações mais importações) elevou-se a 1,7 triliões de dólares, 20% acima do valor alcançado no ano anterior. Este salto, deve-se ao uso da China e da sua mão-de-obra barata, como plataforma de produção e exportação de multinacionais de todos os países. Os investidores e políticos ocidentais não vêm neste facto nenhum problema. Mas as autoridades chinesas fecham por ano centenas de empresas por não respeitarem os direitos básicos dos seus trabalhadores; sinal desta tendência é o facto de a empresa campeã mundial da precariedade, a americana cadeia de supermercados da filial chinesa da Wal-Mart ter sido obrigada a aceitar o direito à filiação sindical dos seus empregados.

A China possui hoje 200 milhões de internautas e realiza um esforço de investimento na educação e saúde públicas sem paralelo em nenhum outro país. A base ideológica e o regime político que permitiram este avanço não foram nem o liberalismo nem o capitalismo democrático, mas sim a doutrina do “socialismo científico” (enquanto primeira etapa do comunismo), elaborada e desenvolvida autonomamente pelo PCCH e o regime da República Popular, uma democracia popular, cujas últimas reformas, curiosamente, tiveram a sua origem nas fileiras dos militares, que, antes dos sectores políticos reformadores, compreenderam a importância da revolução técnico científica contemporânea. O mesmo partido que, antes de nenhuma outra força política, denunciou o carácter imperialista da política da URSS de Brejnev e da democracia americana de Jonhson, mas desenvolveu com esses países uma política de paz, comércio livre e intercâmbio científico, técnico e educativo. A sua diplomacia, frequentemente acusada de pragmatismo, visa desenvolver relações amistosas com todos os países, com base nos cinco princípios de coexistência pacífica: respeito mútuo pela soberania e pela integridade territorial, não agressão mútua, não interferência nos assuntos internos de outros países, igualdade e benefício recíproco, e resolução pacífica dos conflitos.

Sem a China como suporte da dívida dos EUA e o seu imenso mercado ainda em crescimento, o estado americano teria falido e os efeitos devastadores da crise nas democracias ocidentais teriam trazido às suas nações e povos os quatro cavaleiros do apocalipse.

A China reclama uma nova ordem financeira mundial, face à precariedade do dólar como moeda padrão e às práticas especulativas das sociedades financeiras internacionais, seguidas também por alguns bancos. Uma nova moeda internacional de referência e o fim dos paraísos fiscais, instalados no próprio coração da Europa, na Suíça, Luxemburgo, Liechtenstein … na linha de Bretton Woods e da visão premonitória de Keynes, e, nestas propostas, está acompanhada pela Rússia, a Índia e a o Brasil, tal como pelos especialistas das Nações Unidas chamados a debelar a crise e a conter o seu retorno ainda mais violento e destruidor.

A China e os Direitos do Homem (esquecidos)

O regime chinês é acusado de desrespeito pelos direitos do homem e o quadro social da China, associado à ausência de direitos básicos fundamentais.

Não é esta a visão que os nossos politólogos, da direita à esquerda, fazem passar para a opinião pública. O regime chinês é acusado de desrespeito pelos direitos do homem e o quadro social da China associado à ausência de direitos básicos fundamentais. Não raro, escamoteia-se o facto das empresas que investiram recentemente na China serem predominantemente ocidentais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adoptada pela ONU em 10 de Dezembro de 1948 (A/RES/217). Esboçada principalmente por J. P. Humphrey, do Canadá, teve no Dr. P.C. Chang, representante da República Popular da China_RPCH e das posições dos países asiáticos, o principal mediador dos consensos estabelecidos nos seus 30 artigos, que hoje, são frequentemente reduzidos às denominadas “liberdades de expressão”.

Reduzir a Declaração Universal dos Direitos humanos às liberdades políticas formais e esquecer o ponto de partida dos regimes, eis o que é comum ao pensamento único e dogmático sobre o que deve ser a democracia.

De facto, em nenhum dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948, também pela China, se consagra o modelo de democracia ocidental como o modelo ideal da democracia política. Recordemos, entre os Direitos do Homem consignados no documento, o artigo correspondente:

“Artigo 21°

1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.

2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país.

3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.”

À força de se insistir no pensamento único sobre o que deve ser a democracia, acaba-se por truncar a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estamos, nas nossas democracias ocidentais, muito longe de grande parte dos ideais descritos nos seus 30 artigos, de que ninguém fala.

E, no caso em análise, talvez que as elites e os povos da China ainda não se tenham esquecido da face imperialista das democracias ocidentais, e guardem bem presente a memória histórica da ruína da economia chinesa pelo roubo do chá e o tráfico do ópio promovidos pela democrática Inglaterra do século XIX, a ocupação e as guerras da Indochina e da Coreia provocadas pelo Japão semi-feudal e capitalista e pelos seus democráticos ocupantes, os colonialistas franceses e os seus sucessores, os EUA. E, portanto, continuem a seguir outro modelo e caminho na luta pela democracia.

O mundo é mais complexo do que o modo como o representam os dogmáticos de todas as cores e é nessa diferença que reside a nossa esperança de evitar a catástrofe iminente.

Antero de Quental e os seus pares conheciam bem o seu país, quando escreveram o Programa das Conferências Democráticas:

"Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo…"





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