14.6.05

Na morte do comunista Álvaro Cunhal: Um Mundo de Pão e Rosas?

Dele se dirá que conduziu a revolução democrática portuguesa, iniciada em 25 de Abril de 1974, à beira da guerra civil, como se, do outro lado, não se somassem golpes e espingardas para a guerra civil.

Do mesmo modo que hoje se celebra a revolução dos capitães, e se esquece a luta de guerrilha em Angola, depois Moçambique e a Guiné, que desgastou as Forças Armadas e fez emergir do seu seio generais dissidentes e jovens oficiais revoltosos. E omite-se a espontânea vaga popular que alastrou pelo país, erguendo seculares e novas reivindicações de liberdade, pão, paz, saúde e habitação. Hesitantes ficaram, então, os pequenos camponeses, a quem as revoluções liberal e republicana prometeram instrução e progresso, mas que só os alcançaram significativamente pelo trabalho duro em sucessivas levas de emigração.
Elaborou Álvaro Cunhal a estratégia do seu PCP, em 1964, prevendo um levantamento nacional contra o fascismo e a possibilidade de instaurar um regime democrático, promotor da descolonização e da paz, (que não seria apenas o fim da guerra em África) e da independência nacional. Publicou também, por essa altura, a sua crítica aos intelectuais e extremistas de esquerda a cuja acção política chamou "radicalismo pequeno burguês de fachada socialista", tratando-os embora como camada social aliada no sistema de alianças de poder para a Revolução Democrática e Nacional.
Hoje, quase todos os que criticou estão onde ele previa que fossem parar: no limite, escrevem a sua bibliografia não autorizada como o golpe final, sem misericórdia, contra o líder carismático ou clamam a palavra revolucionária, na segurança das revistas, dos mass media ou do parlamento.
Foram os pobres do campo que deixaram Cunhal e o PCP isolados no auge da revolução em 1975, porque o apelo a que nem mais um soldado embarcasse para a guerra e pelo regresso dos soldados, que os aproximara da esquerda, já tinha sido concretizado e, no seu lado negativo, com eles vinham meio milhão de "retornados", das suas próprias famílias, a vida desfeita pelos confrontos da descolonização. Mas, sobretudo, porque já não eram os rendeiros e assalariados dos anos 60, sonhando com a terra que gerações de trabalhadores rurais granjearam para nobres e burgueses, tinham-na comprado, transferido marcos e francos, franceses ou belgas, para os bancos e as contas vazias dos proprietários absentistas, comerciantes e construtores civis, tornando-se, eles também, pequenos proprietários, cento e cinquenta anos depois das revoluções democráticas europeias e alguns anos antes da revolução democrática em Portugal, que deixaria o PCP sem aliados no Norte e no Centro do país.
Importa também lembrar que as primeiras críticas à linha política do Partido Comunista de Álvaro Cunhal, já vinham do próprio movimento comunista internacional, denunciando a degeneração da URSS num estado imperialista e policial, e que passaram a ser esses interesses a comandar as suas relações internacionais. À luz de tal visão crítica, era sobretudo Angola que interessava à grande potência russa, depois Moçambique, ricos em matérias primas e estrategicamente colocadas nas costas da Rodésia e da África do Sul, na altura bastiões do apartheid e dominando as rotas marítimas entre o Atlântico e o Pacífico.
O PCP dirigido por Álvaro Cunhal resistira ao fascismo nos Sindicatos, aproveitara farsas eleitorais e todas as estruturas onde podia contactar o povo; realizou mesmo algumas acções de sabotagem da máquina de guerra colonial, que não se intensificaram, mas sem nunca preconizar o terrorismo e também sem nunca apelar à deserção, preferindo o trabalho político com os mobilizados.
Por não defender a táctica da recusa em ir para a guerra e perante a sua postura face à política de grande potência da URSS, perdeu apoios entre os jovens e abriu o campo aos radicais que quis neutralizar.
No decurso da revolução democrática de 1974/75, as resoluções escritas por Álvaro Cunhal abandonaram a "ditadura do proletariado" em favor do Socialismo, enquanto, paradoxalmente, todos os partidos "burgueses" aderiam ao socialismo: democrático, personalista ou cristão.
Cumprida a etapa democrática e nacional, com o caminho aberto para a descolonização e o decretos do Conselho da Revolução (Março de 1975, na sequência de um golpe militar de direita abortado) que nacionalizaram as principais empresas, bancos e seguros, com as grandes herdades ocupadas e depois distribuídas pelas Cooperativas e Unidades Colectivas de produção, através da institucionalização da Reforma Agrária dos latifúndios do Alentejo, o experiente dirigente comunista proclamou o rápido avanço para o Socialismo com base na aliança Povo-MFA, Movimento das Forças Armadas, mas admitindo o pluralismo partidário e político, a conservação da propriedade privada até aos níveis da "pequena e média burguesias" e, mesmo, a continuidade na NATO em tempos de feroz "Guerra Fria".
Enganavam-se então as "vanguardas"proletárias, intelectuais e militares, acerca da marcha irreversível para o socialismo.
Na última convulsão militar da revolução democrática, em Novembro de 1975, já a URSS, em disputa aberta com os EUA, criara as condições para incluir as antigas colónias portuguesas na sua órbita de influência e o PCP e o Portugal revolucionário, estigmatizado como a "Cuba da Europa", estavam entregues a si próprios, sob intensa pressão dos estados ocidentais, dispostos a intervir por todos os meios. As unidades militares influenciadas pelos comunistas, não procuraram o confronto e a guerra civil. A extrema direita já não tinha força militar e o seu terrorismo estava condenado ao isolamento, tal como o de esquerda. O caminho para conter as conquistas e avanços revolucionários passaria a ser o da luta política eleitoral.
Quando, na década de 80 o eurocomunismo mudou o carácter dos antigos partidos comunistas europeus e os socialistas, encorajados por Jacques Delors, incorporaram na sua política europeísta as teses liberais.
Quando, nos anos 90, o Bloco de Leste se desfez e com ele o que restava da União Soviética.
Parecia cumprir-se a lei histórica das revoluções derrotadas e exangues, que devoram os seus apóstolos e filhos dilectos, até ao último.
Mas enganavam-se de novo os radicais de esquerda que classificaram o PCP como um partido de "direita, revisionista e pró-social-imperialismo", palavras chave da fraseologia revolucionária, arautos que foram do "verdadeiro socialismo" e são da politicamente correcta "nova esquerda".
O PCP e Álvaro Cunhal prosseguiram o seu caminho e separaram-se finalmente da sua referência estratégica internacional. É certo, ao preço de quarenta anos de dissidências à esquerda e de uma revolução democrática que arriscou as suas conquistas em favor de uma descolonização alinhada com os interesses da grande potência russa.
E Álvaro Cunhal, o líder da luta anti-fascista e o partidário do socialismo? Ganhou ou perdeu perante o julgamento da História? O revolucionário que escreveu o programa, que quis científico e foi premonitório, do levantamento popular e nacional contra o fascismo e o colonialismo e da instauração de um regime democrático e plural, descolonizador e independente, viu triunfar o seu principal objectivo estratégico com o desenlace da revolução de Abril de 1974/75.
Quanto ao "socialismo científico e ao comunismo", "o mundo de pão e rosas" de que falava Marx, e que sempre proclamou como o seu ideal, esse não o alcançou em vida, antes foi testemunha do desmoronar do primeiro estado soviético. Mas alguma vez e nalgum lado ele disse ou escreveu que lhe cobraria o usufruto?

António Carvalho

Publicado no jornal O Público, no dia do seu funeral

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